segunda-feira, dezembro 12, 2005

Cidades talvez não

"Caracas by car"
Clara Ferreira Alves
Expresso - 10/12/2005
"Quando pergunto onde é que se pode caminhar, em Caracas, toda a gente me responde o nome de um centro comercial, e cada um tem o seu. Vá ao Sambil, o maior de todos. Vá ao San Ignacio, o mais bonito, tem uma arquitectura e uma iluminação de luxo, vida nocturna, bares e discotecas. Vá ao CCT Tamanaco, o das boas lojas. Vá ao Recreo, que é mesmo ao lado do seu hotel. Não, respondo eu, caminhar pelas ruas, passear, ver montras, pessoas, paisagens, árvores, casas, o que seja, caminhar por dentro da cidade. Ah, respondem todos, isso não aconselho, é perigoso, questão de segurança, muitos assaltos, muitos roubos, muita violência. Aqui anda-se de carro, e ainda bem que existem os centros comerciais, são perímetros controlados de segurança, está-se muito melhor, é um alívio, e o ar é condicionado. No último dia, resolvi ignorar as normas de segurança e passear nas ruas perto do meu hotel, numa zona da cidade não muito recomendável, e não muito atraente, cheia de paragens de autocarros, vendedores ambulantes, casas de gelado decrépitas e casas de comida típica, areperas, comércio e gente em ziguezague apressado. Não se pode dizer que a capital da Venezuela seja um modelo de desenvolvimento ordenado e harmonioso, pelo contrário, Caracas é a ilustração do modo imperfeito de construir uma cidade, sem plano, sem direcção, sem gosto, e com muito dinheiro nalguns lugares e nalguns bolsos. Caracas é o modelo daquilo em que Lisboa se está a transformar ali para os lados da cintura periférica, com as suas auto-estradas encostadas aos prédios, a fila constante de carros como transporte único e principal, os condomínios privados, a arquitectura pimba (a de Caracas é melhor do que a nossa), os guetos de ricos e de pobres, a mancha de favelas a abraçar a cidade, a ausência de jardins, de passeios, de peões, de pequeno comércio, de ruas habitadas, um centro histórico abandonado ao cair da noite, a abundância de centros comerciais como focos de lazer e «perímetros controlados de segurança». Apesar da sujidade das ruas, dos prédios roídos, da confusão da multidão, dos encontrões e das bichas, prefiro qualquer uma dessas ruas do centro de Caracas, o seus caos e a sua agitação, ao sopro gelado do ar condicionado e à vertigem das escadas rolantes para cima e para baixo, com as pessoas parecidas com hamsters nas rodinhas, para cima e para baixo, para chegar à franchise mais próxima. Nas ruas sente-se o trópico, e aquilo que Gabriel García Márquez escreve em «El Olor de la Goyaba», o cheiro da goiaba. Prefiro o calor que sobe da terra em certas horas como um vapor húmido, as árvores com flores abertas como mãos brancas, as raízes a romper os passeios como cobras enroladas, a mistura do suor com os fritos e o perfume que entra pelas narinas e atordoa. Ali sente-se o trópico e não faz frio, ao contrário de Lisboa, que em certos dias de chuva e bruma, de cinza e Inverno, parece uma pobre cidade mal enfeitada, construída pela ganância e a especulação imobiliária, mobilada por empreiteiros e novos-ricos. Olhem para Caracas e reparem no que aconteceu, no que correu mal. E nem sequer temos a população jovem que a Venezuela tem, com as suas adolescentes viciadas em cirurgia plástica, dizem-me, e em concursos de misses. O grande orgulho nacional é o título de Miss Universo, parece que todas as misses universais são ou tendem a ser venezuelanas. Por cá temos futebolistas e estádios de futebol, cada um com os seus esplendores. Não temos o petróleo que eles têm. O Presidente Chávez, inimigo dos Estados Unidos, amigo de Fidel Castro e dos monólogos televisivos monocórdicos (o programa «Olá Presidente» é comparável a um desses discursos de Castro que só acabam quando Castro quer e com a audiência morta de tédio), o Presidente Chávez está sentado em cima de barris de petróleo, que passou de 20 bolívares em 2001 para 60 bolívares o barril em 2005, façam as contas das divisas que entram graças aos poços de Maracaibo. A água é mais cara que a gasolina. E agora, nas eleições confusas do fim-de-semana, com a retirada da oposição, Chávez tem uma maioria absoluta no Parlamento venezuelano, e rédea larga para mais olás, muitos olás. Chávez é odiado e amado, um chefe democraticamente eleito que tem tiques de ditador imperial e militar desfardado. Chávez adora-se, isso é claro, e os espanhóis não desgostam dele, acabam de fechar um negócios de dois mil milhões de euros em armamento e equipamento militar (fins civis, diz Espanha), para grande desgosto dos americanos, que acham que isto põe em causa o equilíbrio da região, sendo o equilíbrio da região aquele que o Pentágono e a Casa Branca definem. Espanha sempre soube tratar dos seus interesses com vigor, o vigor que nos falta, apesar de a comunidade portuguesa no país ser activa, próspera e enérgica e dotada de todas aquelas qualidade empreendedoras que parecem faltar pela pátria, chafurdando na lamúria e na burocracia do Estado, afogada em dívida e desperdício, escândalo e dúvida. No estrangeiro, posto perante a adversidade e a aventura, liberto da pressão dos seus pares, o português transforma-se num herói, uma personagem d’«Os Lusíadas». Os portugueses com quem falo contam-se e contam-me bocados das suas histórias pessoais, vidas feitas e desfeitas e refeitas, sem queixas nem enfados, com uma intensidade despida de cinismo e de chupeta. No estrangeiro, vemo-nos noutro espelho, mais claro, mais largo, mais perto do que não somos por cá. A lucidez com que os portugueses com quem falei apreciam e comentam o país onde vivem não os impede de o amar, e nem um, muito menos os filhos dos emigrantes, tem a intenção de deixar a Venezuela e regressar à terra. Contagiada pelo calor tropical, começo a preferir os restaurantes de Las Mercedes e a música dos mariachis, o cheiro da carne a assar nos varapaus e dos doces de leite condensado, das panquecas de milho com nata, ao faduncho lusitano e às preocupações diárias da nossa civilização funcionária. Hamster por hamster, antes com o cheiro da goiaba. E Caracas, com os seus bairros ricos, os seus arranha-céus, tem as árvores, a vegetação, e a mancha verde do Ávila, a montanha verde-escura que rodeia a metrópole e lhe dá oxigénio. Não, não é o Monsanto prostituído, é uma floresta tropical enfeitada com nuvens, que transforma a paisagem num cenário de filme de aventuras, como um vulcão adormecido. Nenhuma cidade, como nenhuma mulher, é inteiramente feia."