sexta-feira, dezembro 16, 2005

A despedida

"Catorze anos"
Miguel Sousa Tavares
Público - 16/12/2005

"Comecei a escrever no PÚBLICO em 1991. Estamos em 2005: foi há 14 anos, com uma interrupção de ano e meio, entre 2002 e 2003.Quando comecei, apanhei logo de entrada com a iminência da guerra do Golfo, na sequência da anexação do Kuwait pelo Iraque, de Saddam Hussein. A questão suscitou nas páginas do PÚBLICO um intenso debate sobre a justificação moral e política para a guerra, o papel que nela deveriam ter ou não ter o Ocidente, a Europa e Portugal. Esse debate, e posteriormente a cobertura da própria guerra, constituíram, a meu ver, a carta de alforria do PÚBLICO - ninguém mais, na imprensa portuguesa, atribuiu a esse genuíno momento de escolha e de definição política a importância que o PÚBLICO lhe atribuiu - e que mereceu uma surpreendente adesão e compreensão por parte dos seus leitores. Desde o início, defendi e em minoria clara, a legitimidade da guerra e o dever de a Europa e Portugal serem solidários nela com os Estados Unidos. Tratava-se, a meu ver, de não deixar passar em claro uma anexação pela força, sem qualquer título de legitimidade, de não ficar de braços cruzados a ver um ditador louco iniciar a conquista do Médio Oriente e preparar-se para se sentar em cima de dois terços das reservas mundiais de petróleo para depois ditar ordens ao mundo. E tratava-se, para nós portugueses, de adquirir a legitimidade específica que mais tarde nos permitiria exigir dos americanos o seu apoio à libertação de Timor - cuja ocupação era em tudo semelhante à do Kuwait. A guerra fez-se, foi rápida, "limpa" e politicamente exemplar. Quanto a nós, ficámo-nos pelas meias-tintas: solidários, sim, mas desde que não comprometêssemos nem meios nem homens.
Governava então, no apogeu da maioria absoluta, Aníbal Cavaco Silva. Não consegui evitar nunca uma incurável embirração pelo cavaquismo, mais do que pelo seu mentor. De um ponto de vista prático, reconheci a importância das obras feitas, o crescimento económico possibilitado pelo muito dinheiro aplicado, que os fundos europeus e o petróleo barato proporcionaram. Mas fui constatando e escrevendo que nenhuma verdadeira reforma tinha sido ensaiada, apesar das excepcionais condições para tal. Hoje, continuo a pensar que a generalidade dos problemas que enfrentamos e a desesperança que se instalou têm origem directa nesses anos (depois acrescentados aos do guterrismo), em que nada de essencial se mudou na educação, na justiça, na saúde, na reconversão agrícola e industrial e, sobretudo, numa cultura política e cívica fundada no mérito, na coragem de correr riscos, na liberdade individual e na separação entre o Estado e os negócios privados. Pelo contrário, o cavaquismo instalou a promiscuidade entre os empresários e o poder político, a subsidiodependência, a mentalidade dos jobs for the boys, o enriquecimento sem causa e a obediência e subserviência como dever cívico. Cumulada de dinheiro, lugares e favores, a grande oportunidade europeia transformou-se na grande oportunidade para virem ao de cima e florescerem impunemente os piores defeitos dos portugueses. Em lugar de riqueza o país produziu apenas novos-ricos, em lugar de desenvolvimento obras de fachada, em lugar de qualificação negócios desonestos com os dinheiros do Fundo Social Europeu, em lugar de reconversão agrícola e ordenamento do território Porsches, subsídios para nada fazer e urbanizações nas falésias do Algarve.
Os primeiros anos de António Guterres foram um momento de esperança, pelo menos no ar que se respirava. O cavaquismo caiu no justo momento em que o culto da personalidade do chefe e a demissão cívica dos oportunistas se estavam a tornar numa doença feia. Mas, rapidamente afectado por problemas familiares graves, Guterres começou a "deixar andar", entregando a governação aos "cardeais", "bispos" e "sacerdotes" do novo socialismo. A ganância não tem cor ideológica e o resultado foi trágico. O "bloco central", governando à vez, desperdiçou os 20 anos mais propícios do país e temo que, de facto, o tenha tornado inviável para sempre.
Com a deserção de Guterres, o país, sem grande convicção nem ilusões, teve de escolher a única coisa que lhe apresentaram: um governo PSD-PP, chefiado por um senhor muito simpático mas totalmente desprovido de uma simples ideia para Portugal: Durão Barroso. Governou o menos que pôde e, ao primeiro sinal de alarme, agarrou o primeiro comboio que passava e fugiu - literalmente -, deixando-nos entregues nas mãos do impensável Santana Lopes. Para grande espanto meu, ainda houve almas piedosas que reclamaram para isto o "benefício da dúvida". Eu cá não: estão aí os arquivos do PÚBLICO para provar que, ainda ele não tinha tomado posse, e já eu antevia um país transformado em anedota. Sampaio demorou nove meses até perder definitivamente a vontade de rir. Hoje, podemos especular se o Presidente foi o mais calmo e o mais avisado de todos, escolhendo queimar friamente Santana Lopes, em lugar de o recusar liminarmente. Talvez ele tenha tido razão, mas a verdade é que com isso se perdeu mais um ano. E, enfim, chegámos aonde estamos agora, cedo de mais ainda para fazer um juízo.
Nestes 14 anos de escrita, agarrei dezenas de temas e algumas poucas causas que me pareceram determinantes. Acho que fui dos primeiros a alertar para o descalabro para que caminhava a justiça, confundindo-se independência das funções com impunidade funcional; dos primeiros a alertar para as consequências de toda a ordem que a falta de uma política de ordenamento territorial e de defesa da paisagem e do ambiente iriam causar, aliadas à irresponsabilidade ou venialidade daquilo a que chamei "o poder fatal" - as autarquias. Uma e outra coisa foram causas perdidas.
Anos e anos a fio, insurgi-me contra a cobardia diplomática de Portugal face à questão de Timor. Alguém que muito respeito respondeu-me uma vez que Timor era a "causa romântica" de alguns jornalistas, cuja "militância" impedia a resolução definitiva do problema através das inevitáveis "soluções pragmáticas". Felizmente, contra toda a esperança, por uma vez os "românticos" venceram os "pragmáticos".
Também escrevi até me cansar contra a regionalização dos socialistas, que, confundindo descentralização com desorganização, iria dividir o país em oito coutadas para oito Albertos Joões Jardins regionais, tornando Portugal definitivamente ingovernável. A causa estava perdida à partida, mas, a partir do momento em que se conseguiu esclarecer as pessoas e forçar os políticos a consultar os portugueses, transformou-se numa vitória exemplar.
Escrevi a favor da intervenção na Somália e contra a segunda guerra do Iraque, a favor da Expo-98 e contra o Euro 2004, a favor dos toiros de morte em Barrancos e contra a política nacional de conivência com os governos corruptos dos PALOP, contra os submarinos da Armada e a favor da despenalização do aborto, etc, por aí fora. Não sei se no final sobra alguma coerência ou unidade de pensamento entre questões tão diversas, expostas num total de mais de 600 artigos de opinião. Mas três coisas me consolam: uma, saber e poder dizer que escrevi sempre com convicção e sinceridade e bastas vezes contra o que a prudência aconselharia; outra, que aqui encontrei sempre um espaço de absoluta liberdade e um jornal onde tive orgulho de escrever; e a terceira é que guardo numa gaveta de casa, a benefício de futuras nostalgias, o que tantos leitores me foram por sua vez escrevendo ao longo dos anos e que tantas vezes serviram de estímulo real para continuar.
Este breve balanço, como já perceberam, é uma despedida. Catorze anos chegam hoje ao fim. Naturalmente. Sem rancores e já com inevitáveis saudades. A partir de agora, passo a ser só mais um leitor às sextas-feiras."

1 Comments:

Blogger Jaf said...

Grande porra...

6:25 da tarde  

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