quarta-feira, abril 26, 2006

vai uma passa?

"Casino Portugal"
Miguel Sousa Tavares
22/04/2006 - "Expresso"
«NÓS tínhamos uma lei contra o fumo em locais públicos que era suposto ter entrado em vigor em Janeiro passado: era uma lei sensata e justa, que defendia a liberdade de escolha dos estabelecimentos, os direitos dos fumadores e dos não-fumadores. Mas o novo governo cancelou-a, dizendo que ia estudar melhor o assunto. Logo temi o pior: uma lei mais «moderna», radical, «fracturante». Não há nada que os nossos governos mais gostem do que imaginarem-se à moda, sobretudo se isso apenas implica o trabalho de proibir e não implica diminuição das receitas do Estado. O governo não quer proibir a venda e consumo de tabaco - longe disso! - porque isso significaria um abalo nas receitas públicas. O governo não quer que as pessoas deixem de fumar - e por isso não se propõe participar ou descontar nos tratamentos e medicamentos para tal. Quer que continuem a fumar, mas longe da vista e perto do fisco, ao mesmo tempo que faz passar a ideia de que está a «defender a saúde pública». E tem o apoio das sondagens, sabendo que os portugueses adoram ver proibidos aos outros aquilo que eles não gostam ou não praticam. Aliás, é tão funda a mentalidade salazarista da proibição, que nos inquéritos de rua até há fumadores que defendem a proibição do fumo.
Suponho que, depois de ter proibido o fumo em todos os locais públicos fechados, depois de ter transformado o acto de fumar numa coisa vexatória e clandestina, o governo se prepare para atacar outros vícios privados que são casos de saúde pública. O álcool e a má alimentação, por exemplo. É escusado enumerar os malefícios clínicos e sociais do álcool: muito pior do que deixar fumar numa discoteca é servir «shots» aos miúdos que depois se vão viciar nisso ou virar suicidas na estrada. Quanto à alimentação, é sabido que o seu mau uso é a maior causa de doenças de toda a ordem e respectivas despesas sociais. Muito pior do que fumar num restaurante é comer num McDonalds. Porque não os proíbem?

O que vale é que isto é Portugal e há sempre volta a dar. Fiquei a saber, por exemplo, que a bordo do avião do primeiro-ministro para Angola, onde viajava um terço do PIB nacional - num louvável esforço ético para enriquecer ainda mais a nomenclatura da Grande Família do Futungo de Belas, à custa dos angolanos - era permitido fumar. Aqueles de nós que não conseguirem deixar o vício, têm sempre essa última esperança: serem eleitos primeiros-ministros e associarem o vício privado com a pública virtude. Outra excepção é o vício do jogo, entre nós tratado oficialmente como «investimento» e «indústria turística».
Esta semana, Stanley Ho veio a Portugal inaugurar o seu segundo Casino - o muito publicitado Casino Lisboa, fruto dos delírios da gestão camarária de Santana Lopes, que, ao resolver financiar a impossível ressurreição de uma coisa mais do que medíocre chamada «teatro de revista», conseguiu deixar a Câmara de Lisboa entalada e o Parque Mayer encalhado de vez, ao mesmo tempo que dava ao arquitecto Frank Ghery o seu melhor contrato de sempre, à Bragaparques uma fortuna e ao senhor Ho o cumprimento do «sonho antigo de dotar Lisboa de um casino». Que, como se calcula, fazia uma falta tremenda à cidade e à economia dos seus habitantes - os quais, segundo as previsões da Estoril-Sol, num ano e meio de vício, amortizarão todo o investimento e dentro de dois anos já lá estarão a deixar 125 milhões de euros de receita.

Pois, Stanley Ho - que, para todos os efeitos e dêem-se as voltas ao texto que se derem - faz fortuna à custa do vício alheio, teve o privilégio de ser recebido em audiência privada pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. E, para a inauguração do seu casino, contou com o ministro da Economia e a ministra da Cultura (realmente, os casinos adoram ter uma caução cultural e lá fazem uns concertos e umas exposições de pintura, mas aquilo digamos que está para a cultura como a música militar está para a música...).
Mas, não me interpretem mal: uma das raras virtudes que eu tenho é gostar de vícios. Também gosto de jogar e de ir a casinos. Mas, se tanto, vou uma vez cada dois anos a um casino, onde adoro sentar-me na mesa do «blackjack», pedir um whisky e (oh, escândalo!, oh incongruência!)... acender um charuto. Porque conheço histórias de tragédias pessoais e familiares causadas pelos casinos, ao pé das quais o cancro de pulmão é um simples acidente vital, mantenho-me prudentemente longe. Não defendo a sua proibição porque, acima de tudo, acredito na liberdade de determinação individual, mas, por favor, o mesmo governo que me quer tratar como proscrito por ser fumador, não me venha vender um casino como investimento de interesse público! Fiquem com a receita para os cofres do Estado, mas abstenham-se de hipocrisias.

Particularmente, acontece ainda que eu não gosto da personagem Stanley Ho. Não da pessoa, que não conheço, mas da personagem. E não gosto, desde que, aqui há uns anos, no EXPRESSO, li a única entrevista que o vi dar: perguntavam-lhe, a certa altura, se ele jogava, e ele respondeu, quase ofendido, que não, nunca, jamais. A mesmíssima moral de um governo que cobra em impostos dois terços do preço de cada cigarro e finge querer que as pessoas deixem de fumar. Faz-me lembrar um poema da minha mãe: «As pessoas sensíveis não gostam de ver matar galinhas/ porém, gostam de comer galinhas».

Aqui há umas semanas, também no EXPRESSO, li um trabalho sobre Stanley Ho, onde, a certa altura, um daqueles portugueses influentes que tanto lhe devem, afirmava isto: «Portugal deve muito a Stanley Ho!». E eu fiquei a pensar se seria distracção minha ou se, de facto, não existe nenhuma indústria, nenhuma fábrica, nenhuma exploração agrícola, nenhum bairro social, nenhuma empresa tecnológica, feita em Portugal pelo senhor Ho. Se é distracção minha ou o 84º homem mais rico do mundo não doou a Portugal um hospital, um museu, uma universidade, um centro cultural, um monumento. Ou, mais modestamente, uma ala de hospital, um laboratório de universidade, um centro de terceira idade, um prémio científico ou cultural, uma sala de museu, caramba!, um jardim público! Dizem que, com o novo Casino Lisboa, mais o do Estoril, o comendador Ho terá criado 900 postos de trabalho. Mas alguém tem de trabalhar para ele para que ele possa facturar 125 milhões por ano, só em Lisboa. E, por mais ordenados que ele pague, nunca se compararão àqueles que os seus casinos arrecadam dos jogadores, todos os meses.

De modo que, desculpem este desabafo, mas às vezes penso que, ou eu estou a ficar senil, ou o mundo está de pernas para o ar: exaltam-se as virtudes hipócritas e perseguem-se os vícios honestos.

Deixem lá o cigarro na boca do Malraux! E do Bogart e, já agora, do Corto Maltese!»