Será que ela se deixou afectar?
"Capote"
Clara Ferreira Alves
"Expresso" - 11.03.2006
"«Até àquela manhã de Novembro de 1959 poucos americanos - na realidade até poucos habitantes do Estado do Kansas - tinham jamais ouvido falar de Holcomb. Tal como as águas do rio, ou os motoristas da auto-estrada, ou os comboios amarelos que correm nas linhas de Santa Fé, o drama, sob a forma de acontecimentos extraordinários, nunca ali tinha parado. Os habitantes da aldeia, cujo número não passava de duzentos e setenta, sentiam-se satisfeitos com isso, contentavam-se em levar uma vida pacata; trabalhavam, caçavam, viam televisão, frequentavam a escola, iam à igreja, tinham as suas reuniões no Clube dos 4 HH. Mas de súbito, às primeiras horas dessa manhã de Novembro, uns sons estranhos vieram sobrepor-se aos usuais ruídos nocturnos de Holcomb: os ganidos histéricos dos coiotes, o seco rumorejar das ervas altas, o apito agudo das locomotivas que se afastavam, correndo, na noite. Nessa hora ninguém os ouviu - aqueles quatro tiros de espingarda que, ao todo, acabaram por destruir seis vidas humanas».
Embora apareça na terceira página de «A Sangue Frio» de Truman Capote (Dom Quixote, 2006, trad. Maria Isabel Braga), este é o verdadeiro primeiro parágrafo do livro, o mais célebre romance documental que se escreveu até hoje, inaugurando um género romanesco a que se chamou «não-ficção». Quando a família Clutter foi assassinada na madrugada do dia 15 de Novembro de 1959, em Holcomb, Truman Capote tinha 35 anos e era uma mascote do meio literário e boémio nova-iorquino, muito apreciado por aquilo que o havia de condenar (mais tarde) ao ostracismo, a mordacidade, inteligência e o humor. Já tinha publicado «Breakfast at Tiffany’s» (1958), já tinha ganho um prémio O. Henry com uma das suas histórias, já tinha escrito dois romances («Other Voices, Other Rooms», 1948, e «The Grass Harp», 1951), já tinha colaborado com musicais, filmes e realizadores de cinema, já tinha conhecido Marilyn Monroe, bebido com John Huston e Humphrey Bogart e escrito um famoso perfil de Marlon Brando. Tinha viajado pela Europa, feito jornalismo e sido encomendado pelas melhores publicações americanas, incluindo a sua alma mater, a «New Yorker» de William Shawn. As personagens de Capote, a começar nele mesmo e a acabar em Holly Golightly, tinham um traço comum, uma certa leveza, um modo dramático de deslizar sobre as coisas da vida, incluindo as coisas graves e terminais, como quem dança num palco. Nada, na ficção de Capote e antes de «A Sangue Frio», é considerado demasiado grave ou perigoso, obscuro e obsessivo. Talvez seja isso que atrai o escritor, recostado na sua fama cosmopolita, para o artigo do «New York Times» que descreve o assassinato múltiplo de Holcomb, no Kansas. É assim que começa o filme, «Capote», com uma viagem dele e da sua amiga Harper Lee para o lugar que se constitui como o reverso das luzes de Manhattan. A viagem acabaria por demorar seis anos, e Truman Capote nunca mais foi o mesmo escritor depois de «A Sangue Frio», um trabalho jornalístico que transcende a reportagem e o romance e um livro que serviria de exemplo para outros escritores, entre eles Norman Mailer e Tom Wolfe. Mas, se «The Executioner’s Song» de Mailer é tanto sobre a pena de morte como sobre a personagem do condenado, tanto sobre o sistema como sobre a vítima do sistema, e acaba por condenar a América à pena capital, o livro de Capote é, como todos os grandes livros, sobre pessoas normais apanhadas em situações anormais e é escrito sem vestígios daquilo que torna a outra prosa de Truman Capote tão divertida, o cinismo e a descrença na espécie humana, a incontrolável tendência para a maldade e a tropelia. As anedotas que Capote costumava contar nos livros ou nas entrevistas, e que haveriam de valer-lhe o desprezo e o afastamento de quase todos os amigos no final da vida, e pelejas com outros escritores como Saul Bellow e Gore Vidal, estão ausentes em «A Sangue Frio», uma narrativa que atravessa a vida dos criminosos e das vítimas em paralelo com a autobiografia de Capote, e reconstitui os seus pensamentos e acções, embora seja preciso descobrir os cruzamentos e as identificações com um olho treinado. Capote esconde aquilo que o atrai para os dois autores do crime, sobretudo para um deles, o mais inteligente e manipulador, o mais infeliz e brutal, Perry Smith. Quando Perry e o seu colega Dick Hickock são executados, Truman Capote sente-se mal no seu papel de predador, o escritor à caça do livro. Nascido em New Orleans, e crescido numa terra de ninguém, Monroeville, no Alabama conservador e racista do princípio do século passado onde os trejeitos efeminados de um adolescente homossexual com voz de falsete não seriam muito apreciados, Truman ficou órfão de pai aos quatro anos. Tal como Tennessee Williams, outro sulista perseguido pela moral dominante e educado por mulheres, Capote não teve um pai e tomou o nome do padrasto como nome de guerra. O dele era Truman Strechfus Persons, um nome à medida das suas personagens. A amizade com Harper Lee, a autora de «To Kill A Mocking Bird», vem dessa época, e ela foi a única família que ele teve, uma mulher de princípios que rejeitava a amoralidade triunfante do escritor e desculpava nele uma crueldade de criança. «A Sangue Frio» é uma lenta e demorada pergunta sobre a morte e a violência gratuita. O que leva dois desconhecidos, dois assaltantes vulgares à procura de uns dólares, a chacinar uma família inteira, pais e filhos, cortando a garganta do pai e fuzilando com tiros de espingarda na cara? O que provoca dois homens frustrados pelo assalto não ter rendido o que esperavam a matar como quem vinga uma afronta imperdoável? A resposta arrasta o escritor para um território no coração das trevas, um território onde ele, talvez por causa da sua infância ou talvez não, se sente em casa e em família. A identificação com Perry, visível no filme, leva Capote a dizer que ele e o assassino moravam na mesma casa, ele saiu pela porta da frente e Perry pela porta de trás. A América sai intacta disto, a natureza humana não. Truman não gostava dos homens e os seus livros dão-lhe razão. Perry Smith achava o sr. Clutter uma boa pessoa, até lhe cortar a garganta."
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