sexta-feira, março 10, 2006

Aqui está um tipo que não para de me surpreender

"A raposa e as uvas"
Jorge Fiel
"Expresso" - 04.03.2006

«DAS duas versões clássicas da fábula da «Raposa e das Uvas» prefiro claramente a moral da história tirada por La Fontaine à de Esopo.

Como devem estar lembrados, a história é a mesma- apenas diferem na conclusão. Uma raposa faminta passa debaixo de uma parreira carregada de cachos de uvas bem maduras, mas altas de mais. Por mais que pulasse não conseguiria abocanhá-las.
Na versão de Esopo (séc. VI a.C.), a raposa olhou para os cachos e disse: «Estão verdes...». «É
fácil desdenhar daquilo que não se alcança», concluiu o filósofo grego, tornando-se assim o remoto inspirador do moderno provérbio «quem desdenha quer comprar».

Na versão de La Fontaine (séc. XVIII), a raposa segue o seu caminho, murmurando: «Estão verdes... já vi que são azedas, duras...». «Adiantaria se chorasse?», remata o fabulista francês.

Eu interiorizei, como um mandamento de vida, o pragmatismo do ensinamento retirado por La Fontaine da fábula da raposa.

Sonhar ser vizinho da Yoko Ono no Dakota Building (com vista para o Central Park), ter um apartamento no coração do Marais (preferencialmente na Place des Vosges), ser visita frequente de casa de Scarlett Johansson e voar entre Nova Iorque e Paris em classe executiva com um portátil Sony Vaio BX197XP debaixo do braço, não passaria de um exercício barato de masoquismo.

Seria também um enorme desperdício de tempo que me impediria de tirar prazer dos meus apartamentos na Pasteleira e em São João do Estoril, da companhia da Isabel, João, Pedro e Mariana, das viagens de Alfa entre o Porto e Lisboa em que aproveito as três horas de autonomia do meu HP Pavilion dv 1000.

Devo confessar-vos que vivo bastante satisfeito com o formato «estão verdes... não prestam» gravado no meu disco rígido e respondendo sempre em regime de piloto automático.

Ser um pragmático da linha dura não equivale a atravessar a vida com os braços caídos. O «estão verdes... não prestam» não é sinónimo de desistência, mas sim da recusa em travarmos guerras que à partida sabemos que não podemos vencer.

Se queremos ganhar, é estúpido jogar ténis com Boris Becker. Mas se calhar podemos vencê-lo se o desafiarmos para uma partida de xadrez ou de matraquilhos. Temos é de ser realmente bons e competitivos nestas disciplinas.

Com uma simplicidade luminosa, o ministro de Estado japonês Kouki Chuma explica tudo isto numa frase desarmante: «As roupas baratas, o Japão compra à China. As roupas caras, a China compra ao Japão». Esta bússola de bom senso deveria chegar para sobrevivermos.»