sexta-feira, março 10, 2006

Deixa lá, na Figueira foi um Mercedes

"Obscenidade"
Clara Ferreira Alves
"Expresso" - 04.03.2006

"A notícia vinha no jornal «Público» desta semana, assinada pela jornalista Ana Henriques:

«O Audi topo de gama que a Câmara de Lisboa comprou em 2003 para o seu então presidente Santana Lopes volta à praça daqui a duas semanas, depois de ninguém o ter arrematado num primeiro leilão. Novinho em folha, custou à autarquia 115 mil euros. Três anos passados a Câmara começou por pedir por ele 62.500 euros. Fosse por engolir gasolina como quem bebe água - 17,5 litros aos cem na cidade - ou por medo de notoriedade, o certo é que ninguém se mostrou interessado em adquirir o veículo por este preço. Por isso, e segundo os regulamentos em vigor, a Câmara de Lisboa leva agora o Audi de alta cilindrada, com um potente motor V8 e caixa automática de seis velocidades pela segunda vez à praça, com uma base de licitação dez por cento inferior, ou seja, 56.250 euros. Uma revista da especialidade avalia este modelo em bastante mais dinheiro. Mas a Câmara - que nega que o automóvel seja blindado, como sempre se disse - garante que se guiou por tabelas mais fiáveis, as das companhias de seguros, para assumir esta desvalorização de mais de 50 por cento. Seja como for, no rol de gastos com o Audi há ainda a contabilizar os anúncios que o município tem vindo a publicar na imprensa para se ver livre dele - qualquer coisa como 3700 euros, contas feitas por alto. O actual presidente da Câmara de Lisboa, que não anda no carro por entender que ele não se adequa ao seu estilo, disse há poucos dias que a ideia de o vender partiu do próprio Santana Lopes. Se o próximo leilão ficar igualmente deserto a autarquia continuará a tentar encontrar um interessado mas de outra forma, nomeadamente contactando ‘stands’ de automóveis».

Num país onde os políticos nos querem convencer que são modelos de comportamento e que existem para melhorar a vida das pessoas, e que a causa pública é um acto de serviço, uma notícia como esta deveria ser suficiente para acabar de vez com a carreira de um político. Não está em causa a costumada leviandade de Pedro Santana Lopes, está em causa a pura delapidação de dinheiros públicos, dinheiro dos contribuintes que não ganham, em vários anos, aquilo que a Câmara aceitou pagar pelo carro do seu presidente. No mínimo, isto devia ser um ilícito penal, e quem se comportasse deste modo devia ser imediatamente proibido de receber do Estado português mais um tostão que fosse, o que liquidaria a reforma de Pedro Santana Lopes. No máximo, isto devia ser o final de uma carreira política, qualquer carreira política. Pedro Santana Lopes não chegou ontem à política portuguesa. Inteligente, instintivo e talentoso, ágil e tremendamente hábil em campanhas eleitorais, ganhou as suas batalhas dentro do PSD contra gente que não merecia um terço da simpatia que o jovem auto-intitulado discípulo de Sá Carneiro conseguia arregimentar nas hostes laranjas e nas hostes populares. Perseguido pelos guardiões da moral e os «brigadistas» de uma ética desmentida pelos seus comportamentos duvidosos e os seus negócios amorais, Santana Lopes era o representante de uma geração que, julgava eu, queria o poder para o exercer com exemplaridade e discernimento, misturada com uma certa loucura e anarquia. Ao lado da austeridade de Cavaco e da sua banda de lacaios e barões, Santana Lopes e o seu amigo Durão Barroso pareciam mais saudáveis e mais fiáveis, apesar dos erros e da ambição surda. Tanto num caso como noutro, tiveram tudo nas mãos. Durão Barroso ganhou o país sobre a fuga de António Guterres e Santana Lopes ganhou a Câmara sobre o cansaço de João Soares. Nessa noite, perante as derrotas de Edite Estrela e José Luís Judas, considerados os dois casos extremos de autarcas indesejáveis, o país celebrou a vitória do PSD, e mesmo o país socialista celebrou esta vitória. Começava uma nova era, e o novo PSD, liberto de Marcelo e do seu grupo, e de Cavaco e do seu grupo, parecia estrear uma geração de ouro, esquecendo o facto de Barroso ter enfrentado Marcelo num congresso do partido com palavras duras justamente por Marcelo ter feito a sua aliança com o «inimigo» Paulo Portas. Sabemos hoje como a história acabou. A fuga de Guterres, comparada com a de Barroso, foi nada, e nem é preciso invocar aqui a dúbia moralidade de andar meses a negar a saída de chefe do Governo para na semana seguinte entrar como chefe da Comissão Europeia. Barroso, simplesmente e com toda a desfaçatez, mentiu ao país. Santana, certamente quando tinha acabado de estrear o seu Audi de 115 mil euros, resolveu por obra e graça do Presidente Sampaio (que achou que estes actos eram possíveis e o cargo de primeiro-ministro era fungível e dinástico) mudar-se para São Bento e passar a andar noutro carro. Barroso transformou-se em José Barroso e em comissário, Santana foi despedido e regressou à Câmara de Lisboa donde se retirou reformado, suspendendo o seu mandato como deputado na Assembleia da República. Carmona Rodrigues, o seu número dois, ganhou as eleições a Manuel Maria Carrilho, entretanto desaparecido em combate e ignorado pelo PS ou pela famosa concelhia de Lisboa do PS, que continua a fazer negócios com Carmona Rodrigues e o PSD por, li eu, «não acreditar na política da terra queimada». Entretanto, as duas grandes apostas estratégicas de Santana Lopes, o túnel do Marquês (com o qual concordei) e o Parque Mayer, jazem mortos e arrefecem. Ninguém duvida que o negócio com a Bragaparques, depois da tentativa de corrupção do vereador José Sá Fernandes, avance muito mais, e muito mais há por explicar e o ministério público investigar, incluindo o preço dos terrenos na permuta, inferior à maior oferta, o que é lesivo do interesse da CML. E o túnel do Marquês, se não está parado, parece parado ali para os lados da Fontes Pereira de Melo, aguardando as obras do Metro na Linha Amarela e ameaçando transformar-se noutro Terreiro do Paço. Esta Câmara, que herdou dívidas, sangue, suor e lágrimas, está paralisada em diversas frentes. Da potestade de Pedro Santana Lopes e de José Manuel Durão Barroso, o que ficou? A azia no estômago dos portugueses, o agravamento da crise, e a vitória do Cavaco Silva nas presidenciais, que esconde um PSD a boiar em seco. E ficou este Audi, claro (não), vendido em hasta pública, símbolo perfeito do desrespeito pelo povo português, de que Santana Lopes tanto dizia gostar."