segunda-feira, março 06, 2006

Ainda o enevelope

Miguel Sousa Tavares
"Assalto ao computador"
Expresso - 04.03.2006

"HÁ QUALQUER coisa de novo no raide da justiça contra o jornal «24 Horas» que é suficientemente grave como sintoma para que, mesmo sem cair em alarmismos histéricos, possa passar em claro. Como se fosse um teste da magistratura contra a imprensa, para medir as reacções e ver se há terreno livre para avançar e criar jurisprudência. Pena que tenha sido logo escolhido um jornal que é tudo menos uma referência ética e um modelo de bom jornalismo: vamos acreditar que a ofensiva judicial não teve precisamente isso em conta. O facto é que não apetece nada ter de ser solidário com um jornal como o «24 Horas», mas há alturas em que o mais importante é escolher contra quem se está e não com quem se está.

Recapitulemos o que está em causa, pois o seu simples enunciado é elucidativo. Ao abrigo das investigações do processo Casa Pia - que abriram um precedente nunca visto de meios e métodos de investigação - foi parar ao processo o chamado «Envelope 9», o qual, aberto pelo «24 Horas», revelou conter uma extensa lista das chamadas telefónicas recebidas e efectuadas por umas dezenas de pessoas que tinham em comum estar ligadas à política e não terem qualquer ligação com o processo. Perante a estupefacção geral que esta revelação causou, o Presidente da República (um dos constantes do «Envelope»), chamou a Belém o procurador e falou à Nação para dizer que não toleraria métodos de investigação que incluíam a invasão indevida da privacidade das pessoas e, como tal, dera ao procurador um prazo curtíssimo para apurar como tal fora possível e daí extrair as necessárias consequências, disciplinares e penais. Claro e inequívoco: tratava-se apenas de esclarecer qual das duas hipóteses acontecera: se os investigadores tinham pedido esses elementos ao operador telefónico ou se fora este, sem ter sido solicitado para tal, que os fornecera. Nada mais do que isto e para apurar isto, mesmo ao mais incompetente serviço de investigação do mundo, bastariam três dias, para não dizer três horas.

Mas sucedeu, uma vez mais, o impensável: passado mês e meio, o procurador nada apurou e, não contente com isso, deixou que os seus magistrados mudassem o sentido do mandado presidencial - em vez de apurarem como e por ordem de quem é que tais elementos tinham ido parar ao processo, resolveram apurar como é que tal notícia tinha ido parar ao jornal. Entretanto, o dr. Souto Moura espera que nada suceda até terça-feira próxima, último dia da presidência de Jorge Sampaio, e confia que o novo Presidente não irá mexer num assunto que não foi ele a levantar, criando logo à partida um conflito entre órgãos de soberania. Perfeito, exemplar: nenhuma biografia poderá jamais testemunhar melhor o que tem sido o entendimento das suas funções por parte do dr. Souto Moura - na esteira, aliás, do seu inesquecível antecessor, Cunha Rodrigues, a quem a justiça portuguesa deve muito do estado a que chegou.

Agora, um juiz de instrução criminal acaba de determinar que os computadores apreendidos a dois jornalistas do «24 Horas» podem ser abertos e livremente vasculhados pelos investigadores a mando do dr. Souto Moura. Para justificar aquilo que, antes de mais, é uma extrema violação da privacidade e do segredo profissional, o juiz considerou que «a possibilidade de devassa do sigilo profissional é inferior ao crime que está em discussão». Lê-se esta decisão e fica-se perplexo. Primeiro que tudo, não se percebe bem que crime poderão ter cometido os jornalistas, ao revelarem uma peça que consta de um processo que está em julgamento. Em seguida, «o crime que está em discussão» é o que consiste no pedido ou no fornecimento indevido dos registos telefónicos do «Envelope 9» - foi isso que o Presidente mandou investigar e isso nunca poderia ter sido feito por jornalistas, mas só por quem tinha poderes para tal. Em terceiro lugar, tendo os jornalistas do «24 Horas» fornecido logo as disquetes referentes ao «Envelope 9», assim que foram visitados pelos investigadores, que mais quererão estes vasculhar nos seus computadores que tenha que ver com esta investigação? E, finalmente, atente-se no desprezo a que o magistrado vota o sigilo profissional dos jornalistas, sem o qual nunca teria existido
jornalismo de investigação, a começar por Watergate e a acabar nas denúncias de todos os abusos processuais cometidos durante a instrução do processo Casa Pia.

É impossível fugir à conclusão da leitura sobreposta e sucessiva dos factos. A instrução do processo Casa Pia foi revelando algumas práticas investigatórias e alguns métodos de actuação dos magistrados que não são aceitáveis num Estado de direito (felizmente não extensíveis ao julgamento, cuja condução tem sido inatacável). A certa altura, tornou-se mesmo evidente que havia um desvio político na investigação, visando particularmente o Partido Socialista e acabando por vir a ter uma influência determinante no curso da política nacional. Basta recordar o episódio em que às vítimas do caso foi exibido um catálogo de fotografias de potenciais suspeitos e onde se incluíam, entre muitos outros da área política escolhidos a dedo, Mário Soares, Almeida Santos ou Jaime Gama - um método de investigação inédito, aberrante e assustador.

Nessa fase da instrução, os investigadores contavam com o apoio geralmente acrítico da imprensa, cujo interesse legítimo em querer sempre saber mais do que se passava lá dentro foram alimentando com sucessivas e oportunas fugas de informação, invariavelmente mandadas investigar e logo deixadas em descanso pelo inabalável Souto Moura. Mas agora, ao que parece, os jornalistas já não estão bem vistos lá por casa. Porque, aos poucos, foram pondo crescentemente em causa coisas estranhas que se iam passando e porque, agora que o Presidente da República resolveu intervir e pedir satisfações pelo «Envelope 9», era preciso sacudir a água do capote e arranjar bode expiatório mais à mão: os aliados de ontem.

Fiquemos atentos, porque vêm aí mais episódios desta roda livre em que funciona a justiça. Para breve, prepara-se a criminalização dos jornalistas pela violação do segredo de justiça: prende-se o mensageiro, que está identificado e não faz parte da corporação, e manda-se investigar «rigorosamente», e sempre fracassadamente, quem lhe passou a mensagem, a partir do processo que tem à sua guarda."