terça-feira, maio 02, 2006

Concordo tanto que até duvidei que tivesse sido ele a escrever

"Trata-me por tu"
Jorge Fiel
"Expresso" - 29/04/2005

"QUANDO se doutorou, Marcelo Rebelo de Sousa era administrador do «Semanário». Mal concluiu as provas, a primeira coisa que fez quando chegou ao jornal foi instruir secretárias e telefonistas sobre a nova forma de tratamento a que tinha direito. De ora em diante, quem telefonasse a pedir para falar com o doutor Marcelo seria elegantemente corrigido - «E quem é que deseja falar com o professor Marcelo?».

Nós, os portugueses, adoramos títulos. Uma pessoa tão genial como Marcelo não resiste à vaidade de ser tratado por professor - e quando quer dar uma canelada por baixo da mesa ao seu colega-professor-doutor (e correligionário) Cavaco, faz o «downgrading» de se lhe referir como «o doutor Cavaco».

Uma pessoa tão encantadora como Miguel Horta e Costa não resistiu e mal pôde apoderou-se do título de barão, que vai acumular com o de comodoro da marina da Cascais.

Nós os portugueses, antes de sermos Manuéis, Isabéis, Antónios ou Marias, somos doutores, engenheiros, arquitectos, embaixadores, coronéis, professores, viscondes ou comandantes. E se, de algum modo, nos tornamos relevantes e se uma falha lamentável na nossa formação académica nos deixou nus, desprovidos de um título para anteceder o nome próprio, há sempre um Presidente da República para disfarçar a coisa, fazendo-nos comendadores, uma verdadeira praga a que não lograram escapar pessoas valiosas, que eu prezo e admiro, como Joe Berardo, Joaquim Cardoso ou Horácio Roque - ou até o meu amigo e colega Nicolau Santos, que até nem precisava pois já é doutor (licenciado).

Esta nossa atracção pelos títulos é um péssimo sintoma. Revela uma sociedade doente, onde a pompa conta mais do que o mérito, em que é possível camuflar a incompetência com um título impresso a relevo por baixo do nome, no cartão de visita. A mudança de cultura e mentalidades de que precisamos, para sermos mais prósperos e vivermos melhor, vai revelar-se em sinais, no dia-a-dia. O tratamento por «você» vai tornar-se arcaico, como aconteceu ao «usted» espanhol. Nas empresas e em sociedade, as pessoas vão passar a tratar-se pelo nome em vez do título académico. Os «open space» nos locais de trabalho, que estão na moda nos locais de trabalho (aqui no Expresso o nosso espaço tornou-se esta semana ainda mais aberto com a retirada dos armários altos), não podem ser só físicos - também têm de ser relacionais e mentais."