segunda-feira, janeiro 02, 2006

Simples

"Não podemos tirar comida a quem tem fome para a pôr nos nossos supermercados
O documentário O Pesadelo de Darwin é uma denúncia da globalização a partir da história de um peixe cujos filetes vêm para a Europa, enquanto as carcaças podres são disputadas pelos miseráveis que o pescam em África."
Alexandra Prado Coelho
Público - 30/12/2005
«Nos anos 60, a perca do Nilo, um predador voraz, foi introduzida no lago Vitória, na Tanzânia, como experiência científica. Quase todos os outros peixes existentes do lago foram dizimados. Hoje, a população vive na dependência de um único recurso: a venda da carne branca da perca para a Europa. Uma minoria enriqueceu. A maioria está a morrer aos poucos.
O Pesadelo de Darwin mostra a miséria dos pescadores que sonharam ganhar uns dólares e deixaram terras e famílias, das prostitutas condenadas a morrer de sida, das crianças abandonadas e esfomeadas a lutar por uma cabeça de peixe já podre (tirados os filetes, os milhões de carcaças são aproveitadas pelos tanzanianos, que as secam ao sol num cenário de verdadeiro pesadelo).
No meio de tudo isto, há os aviões, guiados por pilotos russos, que não param de chegar: para a Europa levam o peixe, para África as armas. Para o realizador austríaco Hubert Sauper, o ciclo fecha-se e é muito claro: "Não teríamos percas do Nilo no nosso supermercado se não houvesse guerra em África."
O filme - Melhor Documentário nos Prémios Europeus do Cinema 2004 - estreou-se ontem em Portugal (ver texto no suplemento Y).
PÚBLICO - O filme mostra uma realidade terrível. Mas a perca do Nilo não é também uma fonte de riqueza para as pessoas da região?
HUBERT SAUPER - É, mas a questão é para que pessoas? O que vemos no filme são também "as pessoas", o dono indiano da fábrica faz parte das "pessoas" e está a ganhar muito dinheiro. Se não houvesse o peixe não seria tão rico. Muitos ministros na Tanzânia ganham dinheiro, muitos agentes na Holanda, muitas companhias aéreas ganham muito dinheiro. Muita gente ganha muito dinheiro. Mas a maioria das pessoas do lago Vitória não só não estão a ganhar dinheiro como estão a morrer por causa disto.
Diz que todos os países que têm um importante recurso, seja a perca do Nilo no lago Vitória, os diamantes ou o petróleo, sofrem de certa forma uma maldição.
Seria melhor não o terem?
Na maior parte das vezes é uma maldição. Uma das razões pelas quais, por exemplo, o Mali é um país pacífico é porque até agora não encontrou petróleo ou ouro. E por que é que a Nigéria está a arder? Porque há muito petróleo. É uma maldição, mas também uma bênção para muita gente que vem da Nigéria e agora tem uma grande casa no Sul da França.
Mas quando se fala de recursos naturais, como comida, algo que se pode consumir no local, então é um crime ainda mais óbvio levá-lo para fora do país. Não se pode tirar comida de um país onde as pessoas não têm suficiente para a pôr num supermercado em Lisboa. Há uma palavra para isto: neocolonialismo, com uma lógica de mercado.
Acontece sempre a mesma história, quando um país encontra um recurso natural apetecível?
Na maior parte das vezes, sim. Há algumas pessoas que cultivam café e que beneficiam do comércio justo, mas 99 por cento não só já não têm comida, porque qualquer pedaço de terra verde é usado para cultivar café, como já não conseguem vender o café porque é a Nestlé que dita os preços. Por isso as pessoas morrem de fome em zonas onde tudo é verde. E nós, os europeus, chegamos lá e perguntamos "como é que as pessoas morrem de fome num sítio onde tudo cresce?". Sim, mas em todos os espaços onde as coisas crescem está uma estúpida planta de café, ou tabaco, ou de outra coisa para a Europa.
Mas como é que a população pobre do lago Vitória encara a perca do Nilo?
Os pescadores, por exemplo, vêm de sítios muito distantes do lago, eram camponeses e deixaram os seus campos porque queriam ganhar dólares. Acham que a perca do Nilo é uma coisa boa porque agora ganham dólares. Mas não sabem que 90 por cento de entre eles estão infectados com HIV, esqueceram-se que deixaram para trás oito crianças, e que o campo que tinham antes já não é cultivado, e que a Unicef tem que alimentar os filhos deles porque eles foram ganhar dólares. Os donos das fábricas não sabem como vivem os pescadores. Há um total desfasamento de conhecimentos. E uma absoluta relação de todos os seres humanos com os dólares. Esta globalização faz com que estejamos todos ligados mas não saibamos nada uns dos outros.
Foi descobrindo essas relações à medida que ia filmando ou já tinha o quadro completo no início?
No filme convido o espectador a esta descoberta. Pergunto às pessoas o que trazem os aviões, não é que eu não saiba, é a minha técnica de trabalho. Mas durante a filmagem houve uma série de pormenores que foram surgindo.
Toda a gente parece ter grandes reservas em falar do tráfico de armas. Era também assim quando desligava a câmara?
A forma como filmo tem muito a ver com o estar com as pessoas. Não há diferença entre falar com alguém com ou sem câmara - nem para mim nem para eles. Não fui ter com as pessoas nem lhes disse "ok, não estou a filmar, diga-me a verdade". Eu sabia a verdade. Sabia o que estavam a fazer. Queria convidar os espectadores nesta viagem de descoberta. Era uma viagem que eu já tinha feito há muito tempo. Há um momento de reconhecimento, em que nos apercebemos de uma coisa. Aconteceu-me há muitos anos quando fiz um filme no Congo sobre refugiados, e conheci pilotos que me contaram o que faziam [o transporte de armas].
Considera-se um cineasta político?
Sou um realizador interessado na história contemporânea. Interesso-me pelas pessoas e isso torna-se político, porque a política tem a ver com as pessoas. Mas não sou um activista. Não quero investigar. Não é o meu trabalho descobrir que há aviões cheios de armas a ir para África. Não é o meu trabalho dizer-lhe que as crianças são pobres em África, que morrem de fome, que há guerra, prostituição - isso já você sabe. Só posso traduzir o que você já sabe numa obra de arte que a faça talvez entender alguma coisa.»