sexta-feira, dezembro 23, 2005

É Natal

"A ‘recentragem’ "
Clara Ferreira Alves
Expresso - 23/12/2005

«O Vítor e a Fredy ofereceram-me dois frascos, geleia de marmelo e compota. Eu dei-lhes a colecção de DVD das peças de Shakespeare pela BBC e um livro de Saul Bellow. Houve outros presentes, menos literários, mas, nas conversas que tenho com o Vítor por mail, sei que ele é um amante de literatura. As observações sobre «A Mancha Humana», de Philip Roth, são perfeitas. E sobre o Graham Greene, uma das minhas paixões, e que ele acabou a oferecer à Fredy, «O Fim da Aventura». Como não pode virar as páginas do livro, e o virador automático avariou, é a Fredy que se senta na cadeira de rodas dela ao lado da cadeira de rodas dele, mais alta, e lhe vira as páginas. Com o DVD é mais simples. O DVD foi a Fredy que lhe comprou, mais a televisão com antena interior e apenas quatro canais, porque não há parabólica nem cabo no quarto do Vítor no Pousal. Assim, poderão ver juntos «Hamlet», «Romeu e Julieta», «Macbeth», «Júlio César»... com legendas em português. E poderão ver o «Gato Fedorento», aliás, vimos juntos uns sketches dos Gatos, descambou em gargalhada. Num lar de deficientes profundos ouvem-se muitos gritos, choro, objectos arrastados, sussurros, gemidos, grunhidos, não se ouve o riso. A gargalhada do Vítor é silenciosa, aprendeu a rir com os olhos. A doença degenerativa que lhe aprisionou o corpo e lhe paralisou todos os músculos excepto aquele no pescoço com que ele acciona o computador que a PT lhe ofereceu, com o sistema especial The Grid (parecido, creio, com o do físico Stephen Hawking), não lhe tocou na cabeça e vingou-se em tudo o resto. O cérebro lá está, activo, vigilante, inteligente, emotivo, o corpo é que foi deixando de obedecer. De modo que ele e a Fredy comunicam pelo velho sistema por ela inventado, filas de letras do alfabeto coladas no tabuleiro da cadeira. Ela diz, com a sua voz entaramelada (a deficiência dela, embora a paralise, não lhe retirou a fala nem o uso dos braços e das mãos), um, e vai soletrando as letras da fila número um, A, B, C, D, até o Vítor, com um sinal imperceptível dos olhos e um ruído da laringe (o Vítor não pode falar), assinalar a letra. E assim, lentamente, pacientemente, constroem um diálogo. Demora tempo, tudo demora tempo, e a Fredy recomeça quando não consegue identificar a palavra. Para abreviar, completamos a frase, e se não acertamos, voltamos atrás, caminhando sobre os nossos passos naquele discurso a conta-gotas. As frases do Vítor são sempre acertadas e cheias de humor. A televisão faz-lhe companhia e a RTP2 é a sua favorita. Adorou o «Six Feet Under», eu aviso-o (ele ouve bem) que vem aí o «Curb Your Enthusiasm», do Larry David, o homem que inventou a série «Seinfeld». Esquecemo-nos como a televisão pode ser a única companhia, e a boa companhia, embora no caso dele a companhia seja a Fredy e as pessoas do Lar do Pousal, gente heróica que atravessa o inferno do sofrimento humano. Freiras, terapeutas, professoras, empregadas, juntos fazem daquela casa sustentada pela Santa Casa da Misericórdia um verdadeiro lar. No Pousal coabitam as doenças genéticas mais terríveis com as deficiências mais e menos profundas. Da esclerose múltipla a síndromas com nomes impronunciáveis. E coabitam as idades todas, as crianças e os velhos, os que vivem numa região crepuscular onde anda desaparecida a face de Deus, onde parece desumano aquilo que não deixa de ser profundamente humano. E a directora do Lar, a Maria Antónia Goulão, a que a Maria José Nogueira Pinto chamava «a santa», quando era a provedora, toma conta de tudo. O dinheiro não abunda, mas o Lar está impecável. Não tem muitos visitantes, as famílias têm problemas em enfrentar a extrema vulnerabilidade de um dos seus, a não pertença ao reino superior da normalidade. A verdade é que uma visita ao Pousal, na Malveira, nos deixa diferentes por dentro. Foi a Maria José que conseguiu editar o livro de poemas do Vítor e da Fredy, «Pontes da Vida», na Bertrand, com prefácio do João Lobo Antunes. Eu apresentei o livro, e vai ter segunda edição, proeza que enche a Fredy de comovido orgulho. A alegria é uma especiaria tão rara e tão cara. Tudo o que aborrece na vida de todos os dias não constitui para os deficientes profundos um problema, ali não há a vida de todos os dias, há a vida de um dia de cada vez. Eu perdi a festa de Natal. Da outra vez havia um lanche, bolos, geleias e compotas caseiras, sanduíches, grinaldas, cartazes, ninguém imagina a quantidade de coisas bonitas que os dedos rebeldes dos internados do Pousal conseguem fazer. Presentes de Natal. Quem olhar para aquilo com olhos cá de fora, fica petrificado de horror. Quem habitua os olhos à luz que há lá dentro, a luz negra do desespero e da dor misturada com a luz clara da esperança e da vontade, sabe que o Pousal é um lugar que não pode ser abandonado aos desaires da Administração Pública, nem aos caprichos dos políticos. O Pousal é a prova de que é para isto, para os que não conseguem caminhar pela vida fora sem a muleta da acção social e da solidariedade, que o Estado existe e tem de continuar a existir. O Pousal é a prova de que o liberalismo que quer retirar o Estado disto tudo é, apenas, a teorização da estupidez e da força bruta de quem é válido e se julga imortal. Por isso, porque sei que mesmo o que é bom pode e deve ser melhorado, e que, se não fosse a caridade da PT, o Vítor não podia comunicar, nem escrever e ir à Net (e ninguém imagina como isso o prende à vida, mantém acesa a sua curiosidade, e a tortura que foi quando a PT demorou dois meses a arranjar o computador), por isso, dizia eu, não acredito que a notícia do jornal diga isto: «Os mais de 100 milhões de euros de receitas líquidas do primeiro ano de exploração do Euromilhões - canalizados para o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e destinados a apoiar idosos e pessoas com deficiência - não foram gastos apenas porque este ano não têm enquadramento orçamental». As receitas revelaram-se «absolutamente explosivas», suplantando as expectativas, e o anterior ministro da Segurança Social apenas terá feito reflectir no Orçamento de Estado deste ano uma pequena parte, pois o jogo estava em fase de arranque. O dinheiro apenas será canalizado, para a Santa Casa inclusive, em 2006, «mas não se pode partir do princípio de que as receitas continuarão tão elevadas». Por isso, diz um porta-voz, está em cima da mesa uma renegociação dos acordos do Estado com as instituições de solidariedade social, incluindo as misericórdias, o que poderá ditar «uma recentragem» das verbas. «Recentragem»? Traduzo do burocratês: menos dinheiro, e toda a gente sabe que as receitas dos Euromilhões nunca descem, só sobem. Tenham vergonha. E, meu caro engenheiro Sócrates, vá ao Lar do Pousal. Faça-me esse favor. Vá lá. E «recentre-se» depois na paz do seu lar e tenha um Feliz Natal.»