Ó infortúnio, que me afastaste anos e anos deste excelso rigor no raciocínio...
"Os polegares de Soares"
Jorge Fiel
Expresso - 23/12/2005
"DOMINGO à noite estive a ajudar a minha filha Mariana, 20 anos, a redigir o seu primeiro «curriculum vitae» (CV). Acondicionar o mais relevante da vida de uma pessoa no espaço equivalente a uma folha A4 é um tremendo desafio.
Devo confessar que torço o nariz quando me chega às mãos um longo e entediante currículo em que um candidato a jornalista tenta disfarçar o nada com o relatório fastidioso de dezenas de participações em seminários, conferências e mesas-redondas. Lembro-me logo das minhas vãs tentativas de esconder com a travessa uma feia mancha na minha toalha de mesa preferida - há sempre alguém a pegar na travessa e a desvendar a nódoa.
O factor escasso é a atenção humana e por isso os currículos devem ser curtos e sintéticos.
Mas para mim o que é realmente importante é a selecção dos factos que revelamos. Nesse aspecto, a elaboração de um currículo é a coisa mais parecida que há com o jornalismo puro e duro.
Duas viagens de «inter-rail» na adolescência, ter sido dirigente da associação de estudantes ou trabalhado nas férias de Verão a distribuir pizzas ou ter um «site» na Internet revelam mais sobre o carácter e personalidade de uma pessoa que a participação num obscuro seminário sobre o PIDDAC.
O Mundo mudou mais nos 20 anos que separam estas presidenciais das de 86 - imaginem que no ano em que Soares bateu Freitas os telefones estavam todos agarrados à parede por um fio! - do que nos restantes 20 séculos dC. Há toda uma geração que está a crescer com o rato do computador numa mão e o comando à distância do televisor na outra.
O essencial para decidirmos em quem votamos não são as promessas dos candidatos, mas sim o verificar nos seus currículos se têm as aptidões e personalidade adequadas ao momento que o país e o Mundo vivem.
Ao incluir no currículo que não usa telemóvel, Mário Soares está a revelar que pertence a uma geração que nunca enviou uma SMS e não deu outra utilidade aos polegares senão a de chuchar neles (quando eram bebés) - ou eventual, e posteriormente, como auxiliares de uma recatada limpeza de salão.
A última revolução tecnológica que Soares acompanhou foi provavelmente a das máquinas de escrever. Não é o homem adequado ao momento em que o choque tecnológico está a encher todas as bocas. Não usar telemóvel no ano 2005 é muitíssimo mais grave do que não ter lido Os Maias em 1955. E o candidato do PS não percebeu isso. Mário Soares não está velho por ter 82 anos. Está obsoleto porque não usa telemóvel e tem orgulho nisso."
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