terça-feira, janeiro 03, 2006

E nós que enviámos o Cherne...ai...

"A Europa, a Ucrânia e Vladimir Putin"
Teresa de Sousa


Público - 03/01/2006

«A União Europeia arrisca-se a começar o ano de 2006 com o despertar doloroso para uma nova e complexa realidade: a crescente dependência energética de uma potência cada vez menos fiável que ameaça cada vez mais a estabilidade da sua fronteira leste

1.A chantagem de Vladimir Putin sobre a Ucrânia acaba de revelar a face mais brutal da forma como Moscovo pode utilizar a arma energética para prosseguir os seus objectivos estratégicos. E nem vale a pena dizer, como chegaram a balbuciar alguns responsáveis europeus, que se trata de uma questão de natureza meramente económica. Foi o próprio Kremlin que, sem qualquer pudor, lembrou o que estava em causa. O novo regime de Kiev quer ser "ocidental", ou seja, aspira a integrar a NATO e a UE? Então habitue-se a pagar a energia ao preço do mercado "ocidental". No Inverno do ano passado, com a sua "revolução laranja", a Ucrânia iniciou o caminho de saída da zona de influência de Moscovo. No Inverno deste ano, passa frio. O circunspecto e insuspeito Monde não hesitava ontem em escrever em editorial que "a primeira guerra do século XXI foi declarada". "Um país acaba de cortar o abastecimento de energia a outro porque este último não se submete às suas exigências. A Rússia, primeiro produtor mundial de gás, acaba de carregar no botão da arma energética."
Berlim, que importa da Rússia, via Ucrânia, 40 por cento do gás natural de que necessita, avisou (timidamente) Moscovo de que a sua decisão unilateral pode vir a afectar as relações económicas com o Ocidente. A presidência austríaca da UE já disse que talvez valha a pena colocar a questão da dependência energética da Europa na sua agenda. A Comissão já convocou para Bruxelas uma reunião de peritos. O alto representante da UE para a política externa, Javier Solana, já se ofereceu como mediador.
Ironicamente, a Rússia acaba de assumir pela primeira vez a presidência do G8, elegendo a segurança energética como o tema político dominante do seu mandato. A forma como tratou a Ucrânia não ajuda nada a dissipar algumas dúvidas sobre a sua legitimidade para exercer tais funções. Mas provavelmente nada disto vai dissuadir Moscovo de prosseguir a sua política de chantagem económica sobre a Ucrânia, precisamente quando as eleições legislativas em Kiev, previstas para o próximo mês de Abril, lhe abrem a oportunidade de tentar reverter a situação a seu favor. Não foi por acaso que Putin classificou o fim da União Soviética como a maior "catástrofe geopolítica" do século XX, durante as celebrações do fim da Segunda Guerra Mundial que decorreram no passado dia 9 de Maio em Moscovo. Por mais que os europeus não queiram ouvir, é esta a realidade com que têm de lidar.
2. A Ucrânia é o elo mais fraco da cadeia de dependência energética da Europa em relação à Rússia. Mas há alguns factos que vale a pena recordar. A Gazprom, a megaempresa estatal russa que cortou o abastecimento à Ucrânia, controla 20 por cento da produção mundial de gás natural, 60 por cento das reservas russas e 16 por cento das reservas mundiais. Se fosse um país, as suas reservas de petróleo e gás combinadas colocá-la-iam apenas atrás da Arábia Saudita e do Irão.
Um quarto do gás natural consumido pela União Europeia vem da Rússia, através de gasodutos que atravessam a Ucrânia. A Rússia é hoje o segundo maior exportador de petróleo do mundo e o primeiro de gás natural. Alguns analistas têm vindo a alertar para "uma relação ao estilo saudita" entre a Rússia e os países ocidentais, numa altura em que a sede de energia das grandes potências económicas emergentes, como a China ou da Índia, volta a colocar a questão do abastecimento energético no centro da geopolítica mundial.
Como é que a União e os seus Estados-membros vão reagir, no curto e no longo prazo, a esta crise? Provavelmente como nos últimos anos, em ordem dispersa e sem uma visão estratégica.
3. Desde que Vladimir Putin chegou ao poder no Kremlin, as relações com Moscovo têm dividido profundamente os países europeus. Para a Polónia, para as repúblicas bálticas e, em geral, para os novos Estados-membros da Europa de Leste, a Rússia continua a ser olhada, por razões mais do que óbvias, com profunda desconfiança. Pelo contrário, a França tende a ver em Moscovo um grande aliado político no seu afã de "contrabalançar" o poder dos Estados Unidos. E nada parece impedi-la de seguir a sua política de "mão sempre estendida", nem a Tchetchénia, nem os direitos humanos nem as liberdades cívicas que Putin se entretém a violar e a limitar sem qualquer preocupação.
O caso alemão é um pouco diferente. A Alemanha olha hoje para a Rússia como um parceiro económico de primeira importância e um insubstituível fornecedor de energia. Em Setembro passado, Gerhard Schroeder assinou com o seu amigo Vladimir Putin um contrato milionário (4 mil milhões de euros) para a construção de um novo pipeline ligando directamente a Rússia à Alemanha através do mar Báltico. Perante os protestos da Polónia e das repúblicas bálticas, o anterior chanceler alemão respondeu que se tratava do interesse vital do seu país em matéria de segurança energética. Angela Markel não põe em causa esta decisão, mas falta saber em que medida a nova chanceler, que prometeu não se relacionar com Moscovo "por cima da cabeça da Polónia", vai reagir à presente crise.
O Reino Unido tem hesitado entre uma visão optimista em relação ao futuro da Rússia e uma reacção mais pessimista e prudente face à deriva autoritária de Moscovo.
Mas quando, no Inverno passado, rebentou a crise ucraniana, não fosse Varsóvia ter saltado para a primeira linha da diplomacia europeia (e os EUA terem dado um pequeno empurrão fundamental), a União teria preferido olhar para o lado. Acabou por fazer o que estava certo, mesmo que sempre receosa de perturbar as boas relações com Moscovo e de ser ver confrontada com mais um país de grandes dimensões e enormes problemas a bater-lhe à porta. Esta crise ajudará certamente a Europa a olhar com mais atenção para as suas relações com Moscovo. A presença de Angela Merkel na chancelaria de Berlim poderá também significar uma abordagem diferente por parte da Alemanha. Mas uma coisa parece ser certa.
Depois de ter passado o ano de 2005 a tentar lidar com a emergência da China na cena internacional (sem grandes resultados, diga-se de passagem), a União Europeia arrisca-se a começar o ano de 2006 com o despertar doloroso para uma nova e complexa realidade: a crescente dependência energética de uma potência cada vez menos fiável que ameaça cada vez mais a estabilidade da sua fronteira leste.Talvez isso a faça acordar para as suas responsabilidades mundiais.»