No melhor pano cai o Cavaco...
"Boa sorte, senhor Presidente!"
Miguel Sousa Tavares
"Expresso" - 11.03.2006
Mas, a partir de anteontem, Cavaco Silva é o meu Presidente, como Jorge Sampaio o foi até lá. Nesta matéria, aliás, sou bastante inflexível: a única pessoa que trato por Presidente é o Presidente da República, seja ele quem for. Estive dez anos na RTP, onde toda a gente tratava os presidentes do Conselho de Gestão por «senhor presidente» (será que ainda continuam a fazê-lo?) e eu nunca o tratei como tal, assim como não trato por presidente os presidentes dos clubes de futebol (incluindo o do meu), das Câmaras Municipais ou de qualquer outra coisa - conforme é costume da boa gente portuguesa. Porque sou republicano, acredito que o respeito devido a um Presidente da República começa por aí e, mais do que uma manifestação de respeito pela pessoa ou pelo cargo, é uma manifestação de respeito pela República e por mim próprio.
Obviamente, só posso desejar boa-sorte ao novo Presidente da República - caso contrário, ou estaria a desejar mal para o país, ou faria parte daqueles que acham que o cargo é rigorosamente inútil e que a única coisa que se espera de um Presidente é que faça umas digressões pelo país, passe revista às tropas em ocasiões solenes, elabore uns discursos rigorosamente despidos de conteúdo político, se desloque em visitas ao estrangeiro onde lhe é absolutamente vedado ocupar-se de política externa e distribua, de vez em quando, umas condecorações pelos amigos e suplicantes.
Ora, eu não acho que o cargo seja inútil e despido de conteúdo político - há mais vida para lá da «bomba atómica», em Belém. A questão, obviamente, está em saber gerir com mestria - e com resultados úteis para o país - essa ambígua demarcação do que sejam ao certo os poderes presidenciais, matéria tão discutida na última campanha eleitoral e condenada a continuar a ser entusiasticamente discutida até à eternidade pelos nossos constitucionalistas. Pessoalmente, acho que não se perderia nada em concretizar alguns desses poderes ou, pelo menos, em demarcar bem as suas fronteiras. Mas sabe-se como os juristas detestam leis claras, que todos possam interpretar de forma mais ou menos pacífica e igual - talvez tenham medo de perder o emprego. É com isso, pois, que vamos ter de continuar a viver. É com isso que Cavaco Silva vai ter de viver nos próximos dez anos - assim tenha saúde, porque vontade de se recandidatar certamente que também a ele não lhe faltará, quando chegar a ocasião.
A avaliar pelo seu discurso de posse, o novo Presidente, tal como muitos anteciparam na campanha mas agora quase todos negavam, vem com vontade de fazer coisas e de não se conformar com o que ele próprio chamou «o imobilismo»: não será uma estátua em Belém nem em digressão pelo país. Não é necessariamente um mal, desde que a sua agenda política própria - que a tem, inegavelmente - não entre em colisão com a do governo.
Na Assembleia da República, Cavaco Silva, não obstante as cautelas da praxe, foi suficientemente explícito em zonas de tradicional ambiguidade, para se poder razoavelmente concluir que, pelo menos à partida, ele faz questão de se distanciar da agora tão elogiada magistratura do seu antecessor. Certas passagens do seu discurso foram, a meu ver, elucidativas. Assim, quando ele, em lugar de dizer que actuará dentro do quadro dos seus poderes constitucionais, disse que actuará «dentro da interpretação que faço dos meus poderes constitucionais». Assim, quando substituiu a «cooperação institucional» dos discursos de campanha pela «cooperação estratégica» do discurso de posse. E assim, quando, referindo-se explicitamente às suas relações com o Governo, falou em fazer «obra comum». Ora, como se sabe, quem tem de fazer obra é o governo - o Presidente limita-se a vigiar que o Governo o faça de acordo com a Constituição. A «cooperação estratégica» não passa por fazer «obra comum»: passa por um fazer e o outro vigiar de alto (nem sequer controlar, porque essa é a função da Assembleia).
Mais sintomático ainda, é quando Cavaco Silva enuncia como programa do seu mandato aquilo que verdadeiramente é um programa de Governo. Quase nada de política externa ou de defesa - as únicas zonas onde ainda partilha constitucionalmente algum poder com o Governo; e nada sobre a qualidade da democracia e os direitos de cidadania, que lhe cabe vigiar. Em vez disso, a reforma da justiça, do ensino e qualificação profissional e do financiamento da segurança social. Tudo, curiosamente, não apenas matérias da estrita competência do Governo, mas também matérias que era suposto terem sido resolvidas com as célebres «reformas da década», que ele anunciou ter feito e, como se vê, não fez.
De facto - e aí reside o essencial da minha crítica ao «cavaquismo» - Cavaco Silva teve dez anos privilegiados para governar e fazer as reformas de que o país precisava e gastou-os a fazer estradas, hospitais e pouco mais. Deixou a justiça em roda livre, aumentou o «monstro» da Administração Pública sem a reformar, deixou a educação entregue aos sindicatos e as verbas para formação do Fundo Social Europeu entregues a vigaristas sem escrúpulos, e a Segurança Social na antevéspera da falência. Tudo aquilo que ele agora anuncia ir exigir que este Governo faça e que ele não fez, quando tinha maioria absoluta, uma enxurrada de dinheiros europeus e uma situação económica internacional invejável, com juros baixos e energia barata. Seja por má consciência, seja por vontade séria de ver o país libertar-se finalmente das razões do seu crónico atraso, a verdade é que Cavaco Silva, se escolher ir por aí, só encontrará neste Governo o mais inadequado dos bodes expiatórios para os males de que o país sofre. A opinião pública tem a percepção de que este é o primeiro Governo em muitos, muitos anos, que começou verdadeiramente a tentar mudar o estado de coisas e a enfrentar os poderes estabelecidos a todos os níveis da sociedade. E, logicamente, espera que o Presidente o ajude, e não que o atrapalhe.
Que a sorte e o talento dêem ao novo Presidente a sabedoria de perceber o que pode e deve fazer e o que não pode e não deve fazer."
Miguel Sousa Tavares
"Expresso" - 11.03.2006
"COMEÇO por fazer esta confissão, se calhar indevida: nunca votei em Cavaco Silva. Nem nas três vezes que se candidatou a primeiro-ministro, nem nas duas que se candidatou a Presidente. Sei que muitos dizem o mesmo, mas no silêncio das urnas votaram nele: não foi o meu caso e, dizendo-o agora, acho que mereço credibilidade. Por razões que adiante resumirei, fui sempre muito crítico daquilo a que se chamou o «cavaquismo», muito embora lhe reconheça seriedade e empenho enquanto governante. E os dez anos seguintes, em que ele esteve em pousio político, à espera de nova oportunidade para Belém, não me foram suficientes para apagar da memória aquilo de que não gostei anteriormente.
Mas, a partir de anteontem, Cavaco Silva é o meu Presidente, como Jorge Sampaio o foi até lá. Nesta matéria, aliás, sou bastante inflexível: a única pessoa que trato por Presidente é o Presidente da República, seja ele quem for. Estive dez anos na RTP, onde toda a gente tratava os presidentes do Conselho de Gestão por «senhor presidente» (será que ainda continuam a fazê-lo?) e eu nunca o tratei como tal, assim como não trato por presidente os presidentes dos clubes de futebol (incluindo o do meu), das Câmaras Municipais ou de qualquer outra coisa - conforme é costume da boa gente portuguesa. Porque sou republicano, acredito que o respeito devido a um Presidente da República começa por aí e, mais do que uma manifestação de respeito pela pessoa ou pelo cargo, é uma manifestação de respeito pela República e por mim próprio.
Obviamente, só posso desejar boa-sorte ao novo Presidente da República - caso contrário, ou estaria a desejar mal para o país, ou faria parte daqueles que acham que o cargo é rigorosamente inútil e que a única coisa que se espera de um Presidente é que faça umas digressões pelo país, passe revista às tropas em ocasiões solenes, elabore uns discursos rigorosamente despidos de conteúdo político, se desloque em visitas ao estrangeiro onde lhe é absolutamente vedado ocupar-se de política externa e distribua, de vez em quando, umas condecorações pelos amigos e suplicantes.
Ora, eu não acho que o cargo seja inútil e despido de conteúdo político - há mais vida para lá da «bomba atómica», em Belém. A questão, obviamente, está em saber gerir com mestria - e com resultados úteis para o país - essa ambígua demarcação do que sejam ao certo os poderes presidenciais, matéria tão discutida na última campanha eleitoral e condenada a continuar a ser entusiasticamente discutida até à eternidade pelos nossos constitucionalistas. Pessoalmente, acho que não se perderia nada em concretizar alguns desses poderes ou, pelo menos, em demarcar bem as suas fronteiras. Mas sabe-se como os juristas detestam leis claras, que todos possam interpretar de forma mais ou menos pacífica e igual - talvez tenham medo de perder o emprego. É com isso, pois, que vamos ter de continuar a viver. É com isso que Cavaco Silva vai ter de viver nos próximos dez anos - assim tenha saúde, porque vontade de se recandidatar certamente que também a ele não lhe faltará, quando chegar a ocasião.
A avaliar pelo seu discurso de posse, o novo Presidente, tal como muitos anteciparam na campanha mas agora quase todos negavam, vem com vontade de fazer coisas e de não se conformar com o que ele próprio chamou «o imobilismo»: não será uma estátua em Belém nem em digressão pelo país. Não é necessariamente um mal, desde que a sua agenda política própria - que a tem, inegavelmente - não entre em colisão com a do governo.
Na Assembleia da República, Cavaco Silva, não obstante as cautelas da praxe, foi suficientemente explícito em zonas de tradicional ambiguidade, para se poder razoavelmente concluir que, pelo menos à partida, ele faz questão de se distanciar da agora tão elogiada magistratura do seu antecessor. Certas passagens do seu discurso foram, a meu ver, elucidativas. Assim, quando ele, em lugar de dizer que actuará dentro do quadro dos seus poderes constitucionais, disse que actuará «dentro da interpretação que faço dos meus poderes constitucionais». Assim, quando substituiu a «cooperação institucional» dos discursos de campanha pela «cooperação estratégica» do discurso de posse. E assim, quando, referindo-se explicitamente às suas relações com o Governo, falou em fazer «obra comum». Ora, como se sabe, quem tem de fazer obra é o governo - o Presidente limita-se a vigiar que o Governo o faça de acordo com a Constituição. A «cooperação estratégica» não passa por fazer «obra comum»: passa por um fazer e o outro vigiar de alto (nem sequer controlar, porque essa é a função da Assembleia).
Mais sintomático ainda, é quando Cavaco Silva enuncia como programa do seu mandato aquilo que verdadeiramente é um programa de Governo. Quase nada de política externa ou de defesa - as únicas zonas onde ainda partilha constitucionalmente algum poder com o Governo; e nada sobre a qualidade da democracia e os direitos de cidadania, que lhe cabe vigiar. Em vez disso, a reforma da justiça, do ensino e qualificação profissional e do financiamento da segurança social. Tudo, curiosamente, não apenas matérias da estrita competência do Governo, mas também matérias que era suposto terem sido resolvidas com as célebres «reformas da década», que ele anunciou ter feito e, como se vê, não fez.
De facto - e aí reside o essencial da minha crítica ao «cavaquismo» - Cavaco Silva teve dez anos privilegiados para governar e fazer as reformas de que o país precisava e gastou-os a fazer estradas, hospitais e pouco mais. Deixou a justiça em roda livre, aumentou o «monstro» da Administração Pública sem a reformar, deixou a educação entregue aos sindicatos e as verbas para formação do Fundo Social Europeu entregues a vigaristas sem escrúpulos, e a Segurança Social na antevéspera da falência. Tudo aquilo que ele agora anuncia ir exigir que este Governo faça e que ele não fez, quando tinha maioria absoluta, uma enxurrada de dinheiros europeus e uma situação económica internacional invejável, com juros baixos e energia barata. Seja por má consciência, seja por vontade séria de ver o país libertar-se finalmente das razões do seu crónico atraso, a verdade é que Cavaco Silva, se escolher ir por aí, só encontrará neste Governo o mais inadequado dos bodes expiatórios para os males de que o país sofre. A opinião pública tem a percepção de que este é o primeiro Governo em muitos, muitos anos, que começou verdadeiramente a tentar mudar o estado de coisas e a enfrentar os poderes estabelecidos a todos os níveis da sociedade. E, logicamente, espera que o Presidente o ajude, e não que o atrapalhe.
Que a sorte e o talento dêem ao novo Presidente a sabedoria de perceber o que pode e deve fazer e o que não pode e não deve fazer."
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