terça-feira, dezembro 20, 2005

Mulheres feias? Em que é que ficamos?

"The dark side of the moon"
Clara Ferreira Alves

Expresso - 17/12/2005

"As garrafas pareciam soldados na prateleira, à espera de serem mobilizados pelas mãos dos dois criados, um deles muito velho e um deles muito novo. Garrafas de vidro murano, azul e verde e amarelo e encarnado, com mistelas e títulos de poemas. Prugna Liquore, Fior di Vite, Grappa Bianca, Julia Nova, Menta Secco, Liquore Secco Mistar. Ninguém em seu perfeito juízo pode querer beber estas coisas, ou dizer com ar sério quero um cálice de prugna secca, de fior bianca, de julia di vite, de menta nova, de grappa mistar. A solidão da cidade à noite entrava pelo Bar Americano dentro e todas as cidades mesmo as cidades de Inverno têm bares americanos com criados de olhos envelhecidos como aguardentes e dedos tremeliques a entornar o álcool no copo. Na Caixa, Cassa, cassa secca, cassa di vite, cassa bianca, cassa nova, Casanova, cassata, caixa registadora, uma mulher de peito vasto cruzava os braços e dizia vamos ouvir um pouco de música. Arrastou-se para um canto do bar e encostou-se ao balcão onde anoiteciam umas focaccias com legumes e uns pães com prosciutto e mozzarella. Espetou os dedos com a cassete na ponta e perguntou o que é isto? O lado escuro da lua, disse ela para ela, absolutamente só naquele dialogo, porque o criado mais novo servia um Campari a uma rapariga de preto que tinha entrado. Um Campari às dez da noite, mais um pires com amendoins salgados, podia começar-se um romance com isto, esta rapariga a entrar sozinha no Bar Americano da cidade que chovia com a praça deserta e iluminada com grinaldas de Natal verdes e encarnadas como os muranos das lojas de recordações, e a rapariga de chapéu preto de feltro ia despindo as luvas pretas para tocar no Campari gelado que o criado novo lhe servia com um sorriso e como quem oferece rosas vermelhas. Fora da porta, um indiano solitário estava abraçado a um ramo de rosas vermelhas e oferecia-as a inexistentes transeuntes, viajantes nocturnos. Nem um e nem uma rosa. Fiori? Cinco euros. A noite não estava para rosas, com a água a entrar pelas ruas, o frio a entrar pelos ossos, e em tudo uma falta de vida, a vita senza fiori, ao contrário da promessa do licor. A mulher enfiou a cassete no gravador e saíram os acordes sinfónicos dos Pink Floyd, podia ser um título de uma zurrapa italiana num bar americano de uma cidade qualquer numa noite de Inverno. Quero um cálice de pink floyd, sem gelo. E um pires de amendoins salgados. Lá fora, o indiano aguentava imóvel e molhado da chuva, abraçado às rosas dentro do plástico transparente, a olhar para a laguna como se esperasse alguém. Fiori? Indianos com rosas vermelhas e bares americanos existem em toda a parte, as raparigas de preto solitárias com Camparis vermelhos dependem da latitude. So you run and you run to catch up with the sun but it’s sinking... the sun is the same in a relative way but you’re older, shorter of breath and one day closer to death. A cassete cantava. A mulher de peito gordo remirava a cena e o criado velho acordou de repente da contemplação de um cartaz que anunciava gelados de fruta e de chocolate e cheirava a Verão e disse, são os pink floyd, the dark side of the moon. Talvez não fosse tão velho, pelo menos não tão velho como a aguardente. Um sopro de gelo entrava pelo bar dentro quando a porta se abria, um casal olhou, ficou a meio, viu o cenário, a peça, as personagens, leu o programa, teve uma intuição breve do largo desolado chamado Bar Americano e fugiu à procura de outro lugar que é o que fazemos todos quando encontramos a solidão nocturna que não nos pertence. O criado velho começou a limpar garrafas aprumadas em cor-de-rosa que anunciavam Bellinis, A Bebida Veneziana! Bellinis prontos-a-beber, sem Harry’s Bar, sem ingleses excêntricos, sem estilo, sem mistério. Bellinis de plástico, pêssego e prosecco, a zurrapa, quero um pink, pink, pink floyd. E um pires de amendoins. Pinga solidão e solitudine no Bar Americano, escorre pelas paredes com a humidade, cola-se às roupas como visco, e a rapariga do Campari tira o chapéu e os cabelos desfazem-se em desapontamento. Se ela fosse ruiva, uma figurinha do Quattrocento, uma madonna de Rafael, uma Vénus de Botticcelli, uma pré-rafaelita inglesa nua num lago verde, se ela fosse bela serviria para o criado novo passar a língua pelos dentes com gula e para o criado velho deixar de limpar a maldita bebida de Veneza e sentir um calor no corpo. Mas... não. Era o pêlo descorado, a cara que se esquece logo, o casaco coçado. O Campari era a sua originalidade, o adiantado da hora o seu não-sei-quê, ou talvez o modo como ela debicava os amendoins com casca, esfregando-os nos dedos para retirar o sal antes de os meter na boca com lentidão e sem som. Um não-sei-quê, um não-sei-que-faço-aqui, que é a pergunta que fazemos todos no silêncio do bar Americano pelas dez da noite da estação errada do ano. And everything under the sun is in tune but the sun is eclipsed by the moon. Quer um gelado de solitudine e chocolate? E o bellini é uma bebida idiota e não se compara com o champanhe bruto e seco. E quem se importaria com essas coisas?, no bar Americano não devem saber onde fica o Iraque que faz naquele dia mil dias de guerra. Nas cidades da chuva os desertos são diferentes, estão dentro das pessoas, na pele das pessoas, nas cavernas do criado velho, nas dunas da mulher da Caixa, na areia serradura do chão, sawdust restaurants with oyster shells como queria o prufrock na canção de amor. Nos desertos das pessoas não há sol nem amor como nos licores, fior di vite, julia nova, menta, prugna, elixires da embriaguez. Lá fora, tinha deixado de chover e o indiano fitava a água negra da noite e talvez visse uma miragem. Fiori? O criado novo recolheu as moedas da rapariga do Campari e voltou-se para a mulher da caixa e disse é ali naquele deserto que tem de pagar. Na registadora. Não que lhe importasse, a rapariga era feia. Uma raspa de beleza teria iluminado o bar, e talvez tivesse ficado de dia, quando a luz traz a varinha mágica e transforma os sapos em príncipes e os bares americanos em breves encontros. The bright side of the sun.

Era hora de fechar."