terça-feira, dezembro 20, 2005

Já somos 2 com estômagos de aço!

"Vacas sagradas"
Jorge Fiel

Expresso - 17/12/2005

"DEVO uma parte substancial da minha barriga, bem como uma extraordinária resistência a todos os tipos de intoxicação alimentar, à mania de me recusar terminantemente a atirar comida para o lixo.

Era miúdo de calções quando os meus pais me tatuaram este hábito. Em minha casa, desperdiçar alimentos, «quando há tantas crianças por este mundo fora a morrerem de fome» (palavras da minha mãe), era um pecado tão grande como roubar ou mentir.

Terça-feira à noite, os restos de jantar de sábado marcharam todos, apesar do mozarela fresco da salada de tomate estar já com um sabor estranho e da fatia de salmão marinado se apresentar com a cor adulterada.

Como é uma grande dor de alma para mim deitar comida ao lixo, sou bastante indulgente com os prazos de validade inscritos nas tampas dos iogurtes. E só capricho no rigor ao raspar o bolor que teima em se apoderar das minhas reservas de queijo Ilhas e Manchego porque sou alérgico à penicilina.

Em casa, uso a bateria de 14 diferentes «tupperwares» de todos os formatos que comprei no Ikea por €3.99 (uma verdadeira pechincha!) para acondicionar as sobras das refeições. No restaurante, armazeno os restos dentro de mim. Posso estar já saciado, mas não suporto deixar comida no prato e até me desagrada ver travessas cheias a regressarem à cozinha. Tenho simpatia pelo modelo norte-americano do «doggy bag», que mais tarde ou mais cedo se vai instalar na Europa. Já há muitas pizarias a incentivarem os clientes a levarem para casa as fatias não consumidas em práticas embalagens de papel «kraft».

A minha grande admiração pela cozinha italiana fundamenta-se no facto da confecção dos seus pratos emblemáticos (pizas e «risottos») se adequar ao aproveitamento de restos. O truque consiste em adicionar as sobras que se acumulam no frigorífico em cima de massa de pão, tomate, queijo e levar tudo ao forno (caso da piza); ou de misturando as sobras com o arroz e ir mexendo, não esquecendo de acrescentar uma dose generosa de parmesão (caso dos «risottos»).

Nós próprios temos a boa tradição de comer roupa velha ao almoço de Natal. Ora o que é a roupa velha senão o aproveitamento do bacalhau com batatas e couves que sobrou da véspera?

Os indianos não comem vacas, que na sua cultura são um animal sagrado. Mas onde as vacas são realmente um animal sagrado é na UE. Uma vaca europeia custa, em subsídios, dois euros por dia. Muito mais do que recebem 1,2 biliões de pobres que passam fome neste mundo. Um estudo do Banco Mundial calcula que o fim dos subsídios aos agricultores na UE e Japão chegariam para arrancar à pobreza 140 milhões de seres humanos, nossos irmãos.

Os 44 mil milhões de euros que custa por ano a Política Agrícola Comum são um insulto, uma soma pornográfica - dinheiro que chegava para fazer quatro linhas de TGV Lisboa-Madrid e Lisboa-Porto e cinco aeroportos da Ota.
Já sabem que sou incapaz de deitar ao lixo um bocado de pão seco de quatro dias sem ouvir na minha cabeça a voz da minha mãe a lembrar-me: «Olha que é pecado desperdiçar comida quando há tantas crianças no mundo a morrerem de fome».

Por isso, espero que compreendam e partilhem a enorme revolta e desprezo que me merecem os dirigentes da UE que atiraram para um beco a cimeira da OMC que está reunida em Hong Kong e me deixam com vontade de me referir a eles com os mesmos termos que um adepto de futebol costuma dedicar ao árbitro que marcou um penálti injusto contra o seu clube."