quinta-feira, agosto 24, 2006

A pistola

"Um Verão português "
Miguel Sousa Tavares
Expresso - 19/08/2004
"1 O ÚNICO Parque Nacional que temos - Peneda-Gerês - ardeu este Verão. Quatro mil hectares de pasto e mata de árvores que já não se plantam desapareceram no que era suposto ser o espaço natural e público mais bem vigiado, preservado e mantido. Afinal, soube-se depois, os caminhos não estavam abertos, a mata não estava limpa, a vigilância não estava atenta. Após reforçar com milhões de euros, helicópteros, aviões e meios sofisticados o combate aos incêndios, depois de passar o ano a intimar os proprietários privados a limparem as suas florestas, o Estado deixou arder o que era seu, por incúria e incompetência.

2 O Algarve, inevitavelmente. Este ano não foram descobertas novas praias, não se fizeram novas estradas, não mudou o saneamento básico nem a capacidade de abastecimento de água. Mas, como todos os anos, aumentou significativamente o número de aldeamentos, urbanizações, construções. Esgotada a vista de mar, de serra, do que quer que seja, a grande novidade agora são os prédios com vista para as rotundas - que, essas sim, proliferam todos os anos. E, depois de Albufeira ter inventado a primeira terrina do mundo (uma inacreditável «marina» feita um quilómetro dentro de terra, por já não haver costa disponível), Vale do Lobo projecta expandir-se para o largo, através de uma ilha artificial, que prolongará o Algarve Atlântico fora. Este Verão tive de me deslocar a Vale do Lobo e a Armação de Pêra e aconteceu-me, de ambas as vezes, uma coisa incrível: dei por mim completamente perdido no meio de tanta construção nova, sem sequer conseguir perceber para que lado estava o mar. Eu, que me gabo de nunca perder o sentido de orientação e que conheço estas terras desde miúdo, aprendi que no Algarve já só de GPS é que se chega onde se quer.

3 Lagos tinha uma estação de comboios dos anos 40 ou 50, estilo Raul Lino, uma construção branca de paredes grossas caiadas, rodeada de palmeiras e araucárias. Com o tempo, a estação foi ganhando «patine» e «charme» e, embora o comboio demorasse hora e meia a percorrer os 40 quilómetros dali até Tunes, onde havia o transbordo de e para Lisboa, era um prazer esperar ou chegar àquela estação, sempre fresca em pleno Verão, cheirando a fruta e rebuçados embrulhados em papel vegetal. Depois, fizeram a marina de Lagos à frente da estação e a cidade deixou de a ver, ali, de sentinela de boas-vindas, do outro lado do rio. Mas, enfim, pelo menos continuava lá e servia, com conforto e encanto, o seu escassíssimo tráfego ferroviário. Mas eis que a Câmara ou a CP se lembraram de ter um ataque de «modernidade». A velha e digna estação de Lagos foi desactivada (provavelmente para ser demolida e dar lugar a mais um horrendo mamarracho), e ao seu lado construíram uma aberração arquitectónica, cuja cobertura tem a particularidade de deixar permanentemente os passageiros expostos ao sol, à chuva ou ao vento e sem lugares para se sentarem. Para embelezar a coisa, resolveram fazer também na estrada que passa ao lado uma rotunda sem saída para lado algum e apenas destinada a fazer os carros andarem à roda para voltarem ao mesmo ponto. E, para «épater le touriste», fez-se um pífio jardim na rotunda, plantado em pleno mês de Julho e regado intensamente. Entretanto, milhares ou milhões de euros depois, o comboio continua a demorar a mesma hora e meia para Tunes que demorava na minha infância. Só que agora espera-se por ele à torreira do sol, numa espécie de monumento ao desperdício e ao mau gosto. É por estas e por outras que eu, quando oiço os autarcas pedirem mais dinheiro, apetece-me puxar da pistola.

4 Se alguém tem uma colecção de pintura com milhares de quadros, tem obviamente um problema entre mãos: onde os guardar, como os expor. Nos países mais «normais», o problema resolve-se habitualmente com a doação da colecção ao Estado ou com a criação de um museu privado. Mas em Portugal as coisas não se passam assim: o problema da colecção do comendador Berardo transformou-se num problema do Estado, aterrorizado com a ameaça de que o senhor levaria a colecção lá para fora, se não lhe garantissem uma solução. E assim se fez: reservaram-lhe toda a área disponível para exposições do CCB, com todos os encargos a serem pagos por nós e até 2017, altura em que Berardo poderá escolher entre vender tudo ao Estado, voltar a ameaçar que se vai embora ou ir mesmo embora, como fez em Sintra, levando a sua colecção para onde lhe garantam igual contrato leonino - o que não será fácil. Agora, ficou a saber-se também que o comendador goza do direito vitalício de vetar o director escolhido pelo Estado para gerir a área do CCB exclusivamente reservada para a colecção. Em troca permite-nos apenas que desfrutemos do privilégio de poder ver os seus quadros até 2017 - coisa que eu, aliás, nem sequer recomendo por aí além. Mas isto é apenas uma opinião minha. Eles é que sabem.

5 Não contente com a extrema indulgência do tribunal que condenou a penas simbólicas os meninos que mataram a Gisberta, considerando o crime apenas o resultado de «uma brincadeira de mau gosto», um dos advogados dos réus anunciou ir processar o Estado por considerar que as oficinas de S. José descuraram a educação do seu cliente. Percebam bem: durante uma semana, ele e os amigos dedicaram-se a torturar sadicamente uma sem-abrigo indefeso, até o lançarem a um poço e deixarem-no lá para morrer. A justiça considerou isto uma brincadeira e uma sucessão de azares. Mas não chega: é preciso ainda pedir desculpa e indemnizar o criminoso.

6 Enfim, uma coisa boa e um português especial. Na hora da verdade, Francis Obikwelu não se preocupou com a «síndroma Mamede»: sabia que era o melhor e que, por isso, tinha obrigação de ganhar, e ganhou. No final nem sequer sabia que tinha também ganho o direito a uma compensação monetária do Estado, pelos seus dois títulos europeus brilhantemente conquistados. O que ele lastimava era ter de viver e treinar em Espanha, porque em Portugal - onde se fizeram dez estádios para o Euro e onde se prepara um centro de estágios luxuoso para a selecção de futebol - não há uma pista coberta onde os atletas olímpicos se possam treinar durante o Inverno. Se não tem nascido na Nigéria e se não se tem treinado em Espanha, será que este português de coração teria chegado onde chegou?"