segunda-feira, março 20, 2006

Eu acho que ela se deixou afectar

"Fechar uma escola"
Clara Ferreira Alves

"Expresso" - 18/03/2006

"A escola D. João de Castro vai fechar. A notícia tem passado mais ou menos despercebida nos jornais, excepto para os interessados e envolvidos, os pais e alunos, o Ministério da Educação e a Câmara Municipal de Lisboa. Esta semana, a associação de pais resolveu meter o Estado em tribunal, exigindo indemnizações. Isto, porque «o clima de instabilidade que se vive na escola tem óbvios reflexos no desempenho dos alunos», segundo o jornal «Público». O Ministério da Educação, através da Direcção Regional de Educação de Lisboa, está a conduzir o processo de encerramento da escola. Ainda segundo a mesma notícia (assinada por João Pedro Henriques), «o encerramento foi anunciado há semanas, mas o processo iniciou-se no ano lectivo de 2001-2002, quando a escola deixou de ter 7.º ano. Nessa altura leccionava-se do 7.º ao 12.º ano, tendo a escola 660 alunos e agora só vai do 9.º ao 12.º, com 291 alunos. Numa primeira fase, foi dito que os alunos da D. João de Castro seriam transferidos para a Fonseca Benevides - cujos corpos directivos, aliás, também se queixaram, alegando não ter condições, nem pedagógicas nem de instalações, para receber os alunos da escola a encerrar». Agora fala-se de uma possível transferência para a escola Rainha D. Amélia. Segundo o secretário de Estado da Educação, seria «irrevogável» a intenção governamental de «suspender» o funcionamento da escola. Por um lado, os pais não sabem o que isto quer dizer, por outro lado, acham que a verdadeira intenção do Ministério e da DREL é a de mudar-se para as instalações da D. João de Castro. A Câmara de Lisboa, que não foi ouvida nem consultada no processo, aprovou uma deliberação contra o Governo, exigindo a suspensão de todos os encerramentos previstos das escolas do concelho. Por tudo isto se vê como está instalada a desordem. A Escola D. João de Castro, que tem um bom lugar no «ranking» nacional da escolas e tem tido bons resultados de sucesso escolar, faz parte de um grupo de escolas, antigamente chamadas liceus, que por sua vez fazem parte do passado e da tradição da cidade. Tal como a Pedro Nunes, a Maria Amália Vaz de Carvalho, a Camões, a D. Filipa de Lancastre, a Passos Manuel, entre outras, a D. João de Castro educou gerações de alunos, e serviu o bairro onde se inscreve e a cidade onde moramos todos. Fechar uma escola é um acto gravíssimo e que deve ser ponderado porque não são apenas as instalações que se fecham, fecha-se também um passado, uma memória colectiva, um pedaço da história pessoal dos habitantes. As instalações da D. João de Castro são de qualidade superior, do auditório ao pavilhão desportivo, do ginásio aos centros de recursos bem equipados, das salas de aula aos jardins. O edifício está em excelente estado, e pressente-se que, para todos aqueles que neste momento frequentam a escola, uma decisão pendente de encerramento deve ser, como alegam os pais, geradora de tensão e instabilidade para alunos e professores, prejudicando o desempenho escolar. As razões invocadas pelo Ministério, quaisquer que sejam, devem ter em conta a Câmara Municipal, que tem todo o direito a ser envolvida no processo, porque as escolas não são apenas uma responsabilidade do Governo mas também da cidade. A razão principal do encerramento deve ser aquela já invocada noutros casos não consumados. Já ouvimos falar no possível encerramento da Passos Manuel, e da Maria Amália Vaz de Carvalho, por falta de alunos e falta de dinheiro. A desertificação do coração de Lisboa e dos seus bairros antigos, a substituição de habitação popular e de baixa classe média por condomínios privados (cujos proprietários preferem as escolas e colégios privados para os seus filhos), levou à diminuição dos alunos das escolas do centro de Lisboa enquanto as escolas dos subúrbios crescem e rebentam pelas costuras. A perene falta de fundos do Ministério da Educação, sem meios financeiros para reabilitar escolas que estão, como estava a Maria Amália até há pouco tempo, em estado adiantado de degradação patrimonial, junta-se à razão anterior para decidir o fecho. Ora, as escolas públicas são e devem ser um meio de captação de habitantes e um modo de convencer os pais a não as trocar por escolas privadas, promovendo a excelência e o ensino de qualidade. Se uma escola está a cair, com os vidros partidos e os jardins secos, com a tinta a despegar-se das paredes e os muros derrubados, os alunos entram em debandada. Já escrevi aqui, justamente a propósito do possível encerramento da Maria Amália, a escola onde andei e uma escola que marcou o resto da minha vida, que a Maria Amália deveria ser arranjada e pintada em vez de encerrada, pondo termo à sua decrepitude e decadência física. Ainda hoje encontro e me correspondo com antigas e excelentes professoras da escola, entretanto reformadas, e que foram essenciais para a formação do carácter e da educação de tantos alunos, e eram unânimes em considerar o encerramento de uma escola assim um atentado histórico. Na altura, falava-se na reconversão da Maria Amália em condomínio privado, um desses crimes comuns em Lisboa, que matou cafés para instalar bancos, e destruiu bairros para instalar fortalezas. A Maria Amália está agora pintada e arranjada, com um aspecto glorioso que realça a beleza do edifício (já não se fazem escolas destas) e recomeça a atrair alunos. Parece que «está na moda ir para a Maria Amália», e acredito que a recuperação da escola está ligada à recuperação do edifício. A Pedro Nunes também anda a necessitar de obras, e assim, escola a escola, se recupera a vida da cidade. A Câmara Municipal tem toda a razão em exigir ser ouvida, porque os critérios economicistas ou funcionais não podem ser razões destrutivas. Pelo menos, antes de se pensarem em alternativas e em modos de atrair a população estudantil. No caso da D. João de Castro, alma mater de muito boa gente, não nos podemos dar ao luxo de a transformar em departamento administrativo. Uma escola é feita por prédios e pessoas, e uma cidade também. Espero que a D. João de Castro, como a Maria Amália Vaz de Carvalho, sobreviva."

Parecem-me mais "Fatias de Leão"

"As OPA ou o ano dos jovens leões"
Nicolau Santos
"Expresso" - 18/03/2006
"DIGAMOS o óbvio: a OPA do BCP sobre o BPI não teria acontecido se Jorge Jardim Gonçalves e Artur Santos Silva fossem os presidentes das duas instituições. Na verdade, desde há muito que vigorava um pacto de não agressão entre os maiores banqueiros nacionais, embora os cenários de fusão amigável sempre tivessem sido motivo de conversas mais ou menos aprofundadas. A mudança de lideranças no sector, desejosas de se afirmar, alterou este frágil equilíbrio. Não nos iludamos, contudo: a OPA é protagonizada por Paulo Teixeira Pinto, mas é improvável que tenha sido lançada sem a concordância de Jorge Jardim Gonçalves. Este ou não faria a OPA ou fá-la-ia de outra maneira. Mas as novas lideranças, no BCP como na Sonae, precisam destas operações para provar que se libertaram da sombra tutelar dos seus antecessores.

ESTABILIDADE POLÍTICA
As duas OPA são também consequência da estabilidade política que o país vive. No último ano, empresários, investidores, decisores, numa palavra, os «animal spirits» de que falava John Maynard Keynes, observaram o estilo e a forma de actuar de José Sócrates. E gostaram. Estão confortáveis com o Governo socialista e não esperam surpresas desagradáveis. A eleição de Cavaco Silva para Presidente da República veio reforçar a crença de que haverá estabilidade política até ao final da legislatura em 2009.
A par disso, a Europa assiste a uma nova vaga de OPA’s como não se via desde os anos 90. De acordo com o gabinete de estudos Dealogics, as operações transfronteiriças na Europa, anunciadas desde o começo do ano, ascendem já a 173 mil milhões de dólares, o valor mais elevado desde há seis anos. E começou a tornar-se claro para empresas cotadas em bolsa que quem não crescer por aquisições, ganhando alguma dimensão, corre o sério risco de ser «opado». Chegou, pois, a hora de voltar a investir, de apostar, de arriscar.
A AFIRMAÇÃO DOS NOVOS LÍDERES
NOS ÚLTIMOS três anos assistiu-se em Portugal a uma lenta mas consistente passagem de testemunho entre os líderes incontestados dos grupos que nasceram ou se recompuseram após 1974 para uma nova geração de dirigentes, excepcionalmente bem preparados nas melhores escolas de gestão mundiais e que entretanto fizeram o seu tirocínio no próprio grupo ou em empresas internacionais. Paulo Azevedo, 40 anos, e Paulo Teixeira Pinto, 45, representam bem essa nova geração de gestores de topo, que no entanto necessitam de ganhar as suas esporas de cavaleiro, a sua carta de alforria. Estas operações são também a marca de água que os distingue. Paulo Azevedo foi o mentor da OPA da Sonaecom sobre a PT. Paulo Teixeira Pinto foi quem propôs avançar sobre o BPI.
NADA SERÁ COMO ANTES
Paulo Azevedo e Paulo Teixeira Pinto correm, no entanto, sérios riscos. Iniciaram um movimento que se sabe como começou - mas não como vai acabar. Como dizia Samora Machel, não se pode parar o vento com as mãos. O mercado português ficou debaixo dos holofotes internacionais. Mesmo que as duas operações resultem, ainda assim as empresas daí nascidas continuarão a ser pequenas no plano europeu e mundial. Logo, o risco de serem «opadas» não pode ser descartado.
Os fundos internacionais podem encontrar um parceiro português, que seja o seu testa-de-ferro para uma OPA concorrente sobre a PT. Estará o Governo disponível para recusar uma operação deste tipo, com características meramente financeiras, em detrimento do projecto industrial da Sonae?
Por seu turno, o BCP soltou todos os demónios ao avançar para a OPA sobre o BPI. Há quatro anos, o BBVA perguntou ao Governo de Durão Barroso e ao Banco de Portugal qual seria a reacção se comprasse um banco português. A resposta foi que não haveria problema desde que a compra não fosse hostil. A partir de agora, nem o Governo nem o banco central estão em condições de dizer, a quem quer que seja, para não comprar um banco em Portugal. Paulo Teixeira Pinto lançou a OPA sem perguntar às autoridades nacionais. Porque é que qualquer outro banco, nacional ou estrangeiro, o há-de fazer a partir de agora?
O DESTINO DOS PAULOS
Para o mal ou para o bem, estas OPA vão marcar o futuro dos dois Paulos - mas também a ideia que vamos criar desta nova geração de líderes e gestores. Se tiverem sucesso, confirmam que já se libertaram da sombra tutelar dos que os antecederam e que vão projectar a sua imagem bem para lá deles. Se não... É que do outro lado também estão jovens leões. A luta vai ser renhida. «Les jeux ne sont pas faits».

P.S. - Na semana passada critiquei o Santander por ter bancado a operação da Sonae sendo o banco que mais trabalhava com a PT, o que lhe possibilitaria acesso a informação confidencial. Do Santander dizem-me que não é assim, da PT insistem que sim. Se errei, as minhas desculpas ao Santander. Nunca quis pôr em causa a credibilidade da instituição."

Também és pouco bruto...

"É o capitalismo, estúpido!"
Miguel Sousa Tavares

"Expresso" - 18/03/2006

"VAI por aí uma euforia tonta com as OPA e a Bolsa de Lisboa. Em tom entusiasmado, garantem-nos que estão de volta os bons tempos do optimismo económico e da «dinamização» da sempre letárgica Bolsa de Lisboa, e juram até que os simpaticamente chamados «investidores internacionais» estão de volta ao mercado de capitais português. Confesso que não percebo tanta euforia: quando os abutres financeiros voltam a pairar no céu é porque há carne fresca para engolir. Como habitualmente, as vítimas vão ser os ingénuos que ouviram dizer que «a bolsa está a dar» e que, sem tempo, conhecimentos e «contactos», vão meter lá as suas poupanças só para perceber que chegaram tarde e a más horas, porque os «investidores internacionais» e os especuladores nacionais já «realizaram mais-valias» e, ala que se faz tarde, foram-se para outras paragens. Já assisti, pelo menos, a duas conjunturas de euforia bolsista entre nós, e não me lembro que a bolsa tenha saído credibilizada ou que o país tenha visto a sua riqueza acrescida, as suas empresas mais competitivas ou a economia mais sólida. Lembro-me, sim, de algumas fortunas feitas em «over-night» e de algumas empresas sem futuro capitalizadas até ao absurdo, e logo vendidas pelos seus proprietários.

Mas a verdade é que andam todos eufóricos, com estes jogos de OPA e contra-OPA. Ensinam-nos, até às décimas, a composição societária da Sonae, da PT, da EDP, do BPI, do BCP, do BES, ficamos a saber quem está por trás de quem, quem está com os espanhóis e quem é suspeito de «patriotismo», quais são os negócios com marca da Opus Dei e os da Maçonaria, e, em tom íntimo, ouvimos dissertar sobre as intenções do Paulo, do Belmiro, do Ricardo, do Fernando e do Engenheiro. Espantados, vemos o acossado presidente da PT discursar às tropas comparando-se ao general Kutuzov resistindo ao Napoleão-Belmiro às portas de Moscovo, e vemos os amigos de ontem acusarem-se de ataques «hostis» e, entrelinhas, de quererem roubar à má-fila o negócio alheio. A paz implodiu entre os cavalheiros da finança, mas, aparentemente, isto é um bem para o país, tão bom que os ministros do Governo não disfarçam a sua satisfação com o que consideram «a retoma da confiança» e «a demonstração de que o mercado funciona». Não compreendo: não foi Marx quem ensinou que é assim que o capitalismo caminha para a sua autodestruição, engolindo-se todos uns aos outros? E não são estes, apesar de tudo, ministros de um governo socialista?

Mas há mais coisas que, estupidamente, me custam a compreender que façam a euforia de um Governo socialista, observando de fora, e deleitado, este espectáculo de miúdos a jogar Monopólio. Vejamos: se, depois de sucessivas fusões e aquisições, só restam praticamente três bancos privados portugueses, não é mau para a concorrência e para os consumidores que um deles engula outro? Com mais de meio milhão de desempregados, não é pior que as anunciadas OPA resultem também em já anunciados despedimentos? Quando se quer impor o aumento da idade da reforma, é saudável que se anunciem, como resultante das OPA, reformas antecipadas, chamadas tecnicamente de «aproveitamento de sinergias»?

E, já agora, o principal: de onde vem tanto dinheiro? À custa de quem foram obtidos os astronómicos lucros da EDP? É sem dúvida louvável que o presidente-cessante da empresa se despeça dando um bónus de 120 euros a cada um dos seus 8.000 trabalhadores (além dos tradicionais e infinitamente mais generosos prémios aos administradores, decididos por um órgão societário, hoje determinante, chamado «comissão de vencimentos»): mas não seria mais louvável que tivéssemos a electricidade mais barata, conforme foi solenemente prometido quando se privatizou a EDP? E o que andava a PT a fazer com tanto dinheiro que, só agora, sob ameaça, resolveu dobrar o dividendo dos accionistas, assim como só agora se dispõe a aceitar o fim do seu confortável monopólio de facto na rede fixa? Não teria sido possível, sem OPA, ter aberto o sector à concorrência muito antes, para que o telefone tivesse deixado de ser entre nós um produto de luxo e os portugueses não fossem obrigados a sofrer o pior e mais caro serviço de telefone fixo de toda a Europa?

E os lucros dos bancos, santo Deus?! Como é que num país onde o PIB cresce 0,5% e os depósitos dos clientes, geridos «private» e profissionalmente, pouco mais valorizam do que a taxa de inflação (e, vá lá, vá lá...), os bancos conseguem apresentar lucros de 60 e 70%? E como podem pagar em média 10% de IRC sobre os lucros - graças ao «off-shore» da Madeira, à «consolidação fiscal» e a uma série de bonificações e isenções - enquanto os seus clientes pagam até 42% de IRS e o porteiro do banco alguns 20%? Onde está a riqueza do país correspondente à riqueza destes gigantes nacionais? Onde estão as empresas que crescem e criam empregos e riqueza graças a financiamento acessível, energia a preços concorrenciais e telecomunicações eficientes e baratas?

Sim, eu sei: lá fora, dizem-nos, é igual. «Lá fora», e «na vizinha Espanha», em particular, também há OPA e «off-shores» e fusões e lucros absurdos no sector financeiro. Já me explicaram isso vários economistas, vários ministros, vários pragmáticos - e eu continuo sem perceber bem. Também sei que há a «globalização» e a necessidade de as nossas principais empresas ganharem «dimensão crítica», para resistirem a investidas do estrangeiro e não termos de cair na situação onde agora se encontram espanhóis e franceses, inventando legislação retroactiva e batotas de emergência engendradas pelos governos, para defenderem os seus «campeões nacionais». Mas, permitem-me um desabafo? A finalidade do capitalismo, como aliás a de toda a economia, não é a satisfação das necessidades individuais? Pois se assim é e se vivemos num incontornável mundo globalizado, a mim, enquanto consumidor e destinatário final das politicas económicas, é-me indiferente a nacionalidade da operadora telefónica, da seguradora do meu carro ou do banco que me financia o crédito à habitação: quero é poder escolher entre quem melhor me sirva.

Por teimosia patriótica ou por necessidade estratégica, acho prudente não abrirmos mão de algumas coisas, mas de outra natureza: a água, a língua e a cultura, a paisagem natural e o património, as 200 milhas, as leis e tradições de vida em sociedade, a Justiça pública, a Caixa Geral de Depósitos, a Selecção Nacional de Futebol e o arquipélago dos Açores. Acrescento, por razões de pura política, mais duas instituições, que acho que devem ser defendidas e até subsidiadas: a agricultura e o Vasco Pulido Valente. A agricultura, por razões à vista de preservação da vida rural e da paisagem e de povoamento e ordenamento do território; o Vasco Pulido Valente, porque, sem o seu pessimismo extremo, temo que já não restassem, por oposição, quaisquer razões para optimismos.

Agora, de duas uma: ou se quer ver o mercado funcionar a sério e então não são admissíveis distorções à concorrência nem situações de favor e privilégio; ou isto não é a sério e não finjam que é, quando dá jeito, e que já não é quando aqui d’el rei que vêm aí os espanhóis engolir os nossos «campeões nacionais»."

Mais acessores

"Explicação"
Vasco Pulido Valente


"Público" - 18/03/2006

«Pese embora a José Manuel Fernandes, quando se tratou das nomeações para o Conselho de Estado, Jorge Sampaio fez precisamente o contrário de Aníbal Cavaco Silva. Queria que os partidos representados na Assembleia da República (excepto o Bloco, nessa altura, ainda em embrião) estivessem também representados no Conselho de Estado. Ofereceu, por isso, um lugar da sua quota pessoal ao presidente do CDS e outro ao secretário-geral do PC. O presidente do CDS, por razões que não interessam aqui, resolveu recusar. O secretário-geral do PC não recusou e o PC teve o seu assento garantido durante todo o mandato. A política de Jorge Sampaio é muito compreensível. Se a Assembleia se portava com facciosismo, ignorando uma parte significativa de si própria, competia ao Presidente repor o equilíbrio. O Conselho de Estado, sendo consultivo, não decide nada, mas na medida do possível deve representar a opinião do regime e do país. Deixar de fora o CDS ou PC diminui, como é óbvio, sua eficácia e o seu valor: e contribui para isolar o Presidente. O Presidente não precisa de uma claque de "notáveis", precisa de um instrumento que lhe sirva de medida e orientação, quando as coisas se complicam.
Quanto aos conselheiros, não há de facto qualquer impedimento a que o dr. Cavaco nomeie Gengis Khan seu assessor político. Só parece estranha a concentração em Belém de gente que em princípio se julgava incompatível, ou quase incompatível, com a personagem pragmática e moderada do candidato à Presidência. A comparação com Sampaio (José Manuel Fernandes que me desculpe) volta aqui a ser reveladora. Sampaio não foi buscar uma dúzia de lunáticos ao formigueiro da extrema-esquerda para o ajudarem. E por um bom motivo. Um pequeno grupo de zelotas, para não dizer pior, acaba frequentemente por influenciar (ou envenenar) a atmosfera ideológica de uma instituição. O que sem eles se considerava impensável é com eles, de repente, vulgar. Admito que vozes de burro não cheguem ao céu por onde paira o dr. Cavaco e que teoricamente a presença em Belém de certas criaturas se destine a meros fins de ornamentação. Teoricamente: porque, na prática, a ornamentação conta. Essas criaturas chegam com um passado, encarnam causas, trazem uma agenda e exercem funções de algum alcance. Não são o dourado de uma porta. São uma franja da direita irreformada e irreformável, que o dr. Cavaco instalou no centro da política.»

Os acessores

"Isto começa mal"
Vasco Pulido Valente


"Público" - 17/03/2006

«O dr. Cavaco nunca passou, ou se apresentou, como um homem típico da direita. Quando chegou a primeiro-ministro, até se disse o único representante português da "esquerda moderna" e durante todo o mandato governou invariavelmente como um "social-democrata" de modelo "europeu", que à superfície parece continuar a ser. Foi, por isso, uma surpresa a espécie de gente que insistiu em levar para Belém. As nomeações para o Conselho de Estado, por exemplo, revelam uma estranha de hostilidade ao Parlamento. Não em si mesmas, claro. Mas porque deixam o PC e o BE sem um único representante, o CDS representado por um homem sem uma verdadeira ligação ao partido e o próprio PSD "real", que ficou só com Marques Mendes (de resto eleito pela Assembleia da República) e com o ambíguo Loureiro, um pouco pendurado. Este Conselho de Estado proclama o "esplêndido isolamento" do dr. Cavaco: a sua orgulhosa auto-suficiência.
A escolha de assessores também não tranquiliza. O assessor para Assuntos Políticos e grande nome da revista Atlântica, António Araújo, o consultor para Assuntos Políticos, o notório dr. Espada, e a consultora para a Ética e Ciências da Vida, uma açoriana, podiam perfeitamente ter saído ontem de uma caverna qualquer do Bible Belt, a berrar por Bush. Será que o dr. Cavaco, que sempre julgámos relativamente equilibrado, quer de facto embarcar numa cruzada moral contra o aborto, a pílula, o divórcio, a homossexualidade, a pornografia e o resto dos crimes sem perdão em que o "niilismo" moderno nos "poluiu"? Se quer, precisa de músculo: e tem muito músculo no dr. Carlos Blanco de Morais, da "nova direita" e da revista Futuro Presente, conhecido apologista da "maneira forte", que da imigração à nacionalidade já mostrou o seu apego à "ordem". Para acabar o quadro, há ainda o contingente "liberal". O inevitável dr. Espada, claro, papagaio por excelência do ultraconservadorismo americano; o prof. Justino, que acha o levantamento do sigilo bancário um acto de "fascismo fiscal" (fascismo? a sério?); e o dr. Borges de Assunção, consultor económico e organizador do Compromisso Portugal (esse benemérito grupo), que vem com a velha receita de "emagrecer" o Estado e reduzir impostos.
Se o dr. Cavaco resolver um dia ouvir este raminho de cabeças pensantes, põe em pé de guerra ou simplesmente em guerra a esquerda e a república. E, se puser, não se deve iludir, com certeza que perde. Isto começa mal.»

Os acessores

"Isto começa mal"
Vasco Pulido Valente


"Público" - 17/03/2006

«O dr. Cavaco nunca passou, ou se apresentou, como um homem típico da direita. Quando chegou a primeiro-ministro, até se disse o único representante português da "esquerda moderna" e durante todo o mandato governou invariavelmente como um "social-democrata" de modelo "europeu", que à superfície parece continuar a ser. Foi, por isso, uma surpresa a espécie de gente que insistiu em levar para Belém. As nomeações para o Conselho de Estado, por exemplo, revelam uma estranha de hostilidade ao Parlamento. Não em si mesmas, claro. Mas porque deixam o PC e o BE sem um único representante, o CDS representado por um homem sem uma verdadeira ligação ao partido e o próprio PSD "real", que ficou só com Marques Mendes (de resto eleito pela Assembleia da República) e com o ambíguo Loureiro, um pouco pendurado. Este Conselho de Estado proclama o "esplêndido isolamento" do dr. Cavaco: a sua orgulhosa auto-suficiência.
A escolha de assessores também não tranquiliza. O assessor para Assuntos Políticos e grande nome da revista Atlântica, António Araújo, o consultor para Assuntos Políticos, o notório dr. Espada, e a consultora para a Ética e Ciências da Vida, uma açoriana, podiam perfeitamente ter saído ontem de uma caverna qualquer do Bible Belt, a berrar por Bush. Será que o dr. Cavaco, que sempre julgámos relativamente equilibrado, quer de facto embarcar numa cruzada moral contra o aborto, a pílula, o divórcio, a homossexualidade, a pornografia e o resto dos crimes sem perdão em que o "niilismo" moderno nos "poluiu"? Se quer, precisa de músculo: e tem muito músculo no dr. Carlos Blanco de Morais, da "nova direita" e da revista Futuro Presente, conhecido apologista da "maneira forte", que da imigração à nacionalidade já mostrou o seu apego à "ordem". Para acabar o quadro, há ainda o contingente "liberal". O inevitável dr. Espada, claro, papagaio por excelência do ultraconservadorismo americano; o prof. Justino, que acha o levantamento do sigilo bancário um acto de "fascismo fiscal" (fascismo? a sério?); e o dr. Borges de Assunção, consultor económico e organizador do Compromisso Portugal (esse benemérito grupo), que vem com a velha receita de "emagrecer" o Estado e reduzir impostos.
Se o dr. Cavaco resolver um dia ouvir este raminho de cabeças pensantes, põe em pé de guerra ou simplesmente em guerra a esquerda e a república. E, se puser, não se deve iludir, com certeza que perde. Isto começa mal.»

terça-feira, março 14, 2006

Um bom negócio

Lisboa
"Audi de Santana Lopes volta hoje a hasta pública"

"PÚBLICO" - 14.03.2006 - 10h21

«Se tudo correr bem, acabará hoje a "maldição" do Audi A8 4.2 litros Tiptronic Quattro do ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Pedro Santana Lopes, que ninguém quer, apesar de estar a "preço de saldo".
Na segunda tentativa de venda do veículo em leilão municipal, poderá ser o ex-autarca e ex-primeiro-ministro a adquiri-lo, caso venha a conseguir um empréstimo bancário para pôr termo "à lamentável situação", conforme noticiou o semanário "Expresso". Com apenas três anos e parado na garagem desde Setembro de 2005, o topo de gama da marca alemã está à venda por uma verdadeira pechincha - 56.250 euros, contra os cem mil euros que custou aos cofres da autarquia. À parte o seu consumo exorbitante em circuito urbano, são muitas as virtudes. Demora 5,4 segundos a chegar aos cem quilómetros, atinge os 250 quilómetros por hora, tem uma caixa automática de seis velocidades, estofos de couro, interiores de madeira de raiz de nogueira, 19 pontos de iluminação, Multi Media Interface (um computador que permite aceder ao telefone, televisão, CD-ROM, sistema de navegação, climatização). Está em bom estado de conservação, conta apenas com 66 mil quilómetros de estrada. Tem uma cor sóbria, azul-escuro. O seu grande defeito são os 17,5 litros de gasolina que consome por cada cem quilómetros. Comprado a 26 de Agosto de 2003, o carro esteve envolto em polémica desde o primeiro dia. A oposição questionou o montante gasto para um automóvel que habitualmente é apenas solicitado para cargos de chefia de Estado. Foi, inclusive, Santana Lopes que decidiu avançar com a venda do carro antes de abandonar a câmara, em Julho do ano passado. O negócio, contudo, acabou nas mãos do actual presidente, Carmona Rodrigues, que avançou com a venda em hasta pública. O ex-ministro das Obras Públicas prefere um Peugeot 607, veículo adquirido por 50 mil euros.»

segunda-feira, março 13, 2006

Em inglês?

"Expresso" - 11.03.2006

"Clara Ferreira Alves processa Pulido Valente

CLARA Ferreira Alves decidiu processar por difamação Vasco Pulido Valente devido aos comentários de que foi alvo no blogue Espectro, dirigido pelo cronista, a propósito de um texto de Ferreira Alves, publicado no EXPRESSO, sobre Santana Lopes."

Ainda o Audi - o problema é quem vai pagar o empréstimo (donde lhe virá o graveto)

"Santana compra carro da Câmara"
"Expresso" - 11.03.2006
"PEDRO Santana Lopes escreveu esta semana a Carmona Rodrigues informando-o de que quer comprar o seu antigo carro na Câmara de Lisboa - um Audi topo-de-gama, que Carmona decidiu leiloar.

Santana diz que vai «recorrer a um empréstimo bancário» para pôr termo «à lamentável situação» que acusa a autarquia de ter criado. «Venho assim tranquilizá-lo perante o grande incómodo que certamente tem sido a questão do ‘carro de Santana’», lê-se na missiva, onde o ex-autarca não poupa um remoque ao seu sucessor e velho amigo: «Procurei até agora não intervir, apesar das notícias e do silêncio da autarquia que deve respeito ao cargo institucional dos seus presidentes».

Carmona Rodrigues entendeu leiloar o Audi 8 (que custou 115 mil euros à autarquia, e que Santana Lopes garante «não ser blindado») por não querer ficar com a viatura. Mas na carta lê-se que a aquisição da viatura foi «uma excelente oportunidade» e estranha-se «ninguém dizer qual o preço dos carros dos presidentes de câmaras de dimensão aproximada ou de responsáveis por empresas públicas».

Das duas vezes que foi a leilão, com o preço-base de 62.500 euros, ninguém licitou a viatura."

No melhor pano cai o Cavaco...

"Boa sorte, senhor Presidente!"
Miguel Sousa Tavares
"Expresso" - 11.03.2006

"COMEÇO por fazer esta confissão, se calhar indevida: nunca votei em Cavaco Silva. Nem nas três vezes que se candidatou a primeiro-ministro, nem nas duas que se candidatou a Presidente. Sei que muitos dizem o mesmo, mas no silêncio das urnas votaram nele: não foi o meu caso e, dizendo-o agora, acho que mereço credibilidade. Por razões que adiante resumirei, fui sempre muito crítico daquilo a que se chamou o «cavaquismo», muito embora lhe reconheça seriedade e empenho enquanto governante. E os dez anos seguintes, em que ele esteve em pousio político, à espera de nova oportunidade para Belém, não me foram suficientes para apagar da memória aquilo de que não gostei anteriormente.

Mas, a partir de anteontem, Cavaco Silva é o meu Presidente, como Jorge Sampaio o foi até lá. Nesta matéria, aliás, sou bastante inflexível: a única pessoa que trato por Presidente é o Presidente da República, seja ele quem for. Estive dez anos na RTP, onde toda a gente tratava os presidentes do Conselho de Gestão por «senhor presidente» (será que ainda continuam a fazê-lo?) e eu nunca o tratei como tal, assim como não trato por presidente os presidentes dos clubes de futebol (incluindo o do meu), das Câmaras Municipais ou de qualquer outra coisa - conforme é costume da boa gente portuguesa. Porque sou republicano, acredito que o respeito devido a um Presidente da República começa por aí e, mais do que uma manifestação de respeito pela pessoa ou pelo cargo, é uma manifestação de respeito pela República e por mim próprio.

Obviamente, só posso desejar boa-sorte ao novo Presidente da República - caso contrário, ou estaria a desejar mal para o país, ou faria parte daqueles que acham que o cargo é rigorosamente inútil e que a única coisa que se espera de um Presidente é que faça umas digressões pelo país, passe revista às tropas em ocasiões solenes, elabore uns discursos rigorosamente despidos de conteúdo político, se desloque em visitas ao estrangeiro onde lhe é absolutamente vedado ocupar-se de política externa e distribua, de vez em quando, umas condecorações pelos amigos e suplicantes.

Ora, eu não acho que o cargo seja inútil e despido de conteúdo político - há mais vida para lá da «bomba atómica», em Belém. A questão, obviamente, está em saber gerir com mestria - e com resultados úteis para o país - essa ambígua demarcação do que sejam ao certo os poderes presidenciais, matéria tão discutida na última campanha eleitoral e condenada a continuar a ser entusiasticamente discutida até à eternidade pelos nossos constitucionalistas. Pessoalmente, acho que não se perderia nada em concretizar alguns desses poderes ou, pelo menos, em demarcar bem as suas fronteiras. Mas sabe-se como os juristas detestam leis claras, que todos possam interpretar de forma mais ou menos pacífica e igual - talvez tenham medo de perder o emprego. É com isso, pois, que vamos ter de continuar a viver. É com isso que Cavaco Silva vai ter de viver nos próximos dez anos - assim tenha saúde, porque vontade de se recandidatar certamente que também a ele não lhe faltará, quando chegar a ocasião.

A avaliar pelo seu discurso de posse, o novo Presidente, tal como muitos anteciparam na campanha mas agora quase todos negavam, vem com vontade de fazer coisas e de não se conformar com o que ele próprio chamou «o imobilismo»: não será uma estátua em Belém nem em digressão pelo país. Não é necessariamente um mal, desde que a sua agenda política própria - que a tem, inegavelmente - não entre em colisão com a do governo.

Na Assembleia da República, Cavaco Silva, não obstante as cautelas da praxe, foi suficientemente explícito em zonas de tradicional ambiguidade, para se poder razoavelmente concluir que, pelo menos à partida, ele faz questão de se distanciar da agora tão elogiada magistratura do seu antecessor. Certas passagens do seu discurso foram, a meu ver, elucidativas. Assim, quando ele, em lugar de dizer que actuará dentro do quadro dos seus poderes constitucionais, disse que actuará «dentro da interpretação que faço dos meus poderes constitucionais». Assim, quando substituiu a «cooperação institucional» dos discursos de campanha pela «cooperação estratégica» do discurso de posse. E assim, quando, referindo-se explicitamente às suas relações com o Governo, falou em fazer «obra comum». Ora, como se sabe, quem tem de fazer obra é o governo - o Presidente limita-se a vigiar que o Governo o faça de acordo com a Constituição. A «cooperação estratégica» não passa por fazer «obra comum»: passa por um fazer e o outro vigiar de alto (nem sequer controlar, porque essa é a função da Assembleia).

Mais sintomático ainda, é quando Cavaco Silva enuncia como programa do seu mandato aquilo que verdadeiramente é um programa de Governo. Quase nada de política externa ou de defesa - as únicas zonas onde ainda partilha constitucionalmente algum poder com o Governo; e nada sobre a qualidade da democracia e os direitos de cidadania, que lhe cabe vigiar. Em vez disso, a reforma da justiça, do ensino e qualificação profissional e do financiamento da segurança social. Tudo, curiosamente, não apenas matérias da estrita competência do Governo, mas também matérias que era suposto terem sido resolvidas com as célebres «reformas da década», que ele anunciou ter feito e, como se vê, não fez.

De facto - e aí reside o essencial da minha crítica ao «cavaquismo» - Cavaco Silva teve dez anos privilegiados para governar e fazer as reformas de que o país precisava e gastou-os a fazer estradas, hospitais e pouco mais. Deixou a justiça em roda livre, aumentou o «monstro» da Administração Pública sem a reformar, deixou a educação entregue aos sindicatos e as verbas para formação do Fundo Social Europeu entregues a vigaristas sem escrúpulos, e a Segurança Social na antevéspera da falência. Tudo aquilo que ele agora anuncia ir exigir que este Governo
faça e que ele não fez, quando tinha maioria absoluta, uma enxurrada de dinheiros europeus e uma situação económica internacional invejável, com juros baixos e energia barata. Seja por má consciência, seja por vontade séria de ver o país libertar-se finalmente das razões do seu crónico atraso, a verdade é que Cavaco Silva, se escolher ir por aí, só encontrará neste Governo o mais inadequado dos bodes expiatórios para os males de que o país sofre. A opinião pública tem a percepção de que este é o primeiro Governo em muitos, muitos anos, que começou verdadeiramente a tentar mudar o estado de coisas e a enfrentar os poderes estabelecidos a todos os níveis da sociedade. E, logicamente, espera que o Presidente o ajude, e não que o atrapalhe.

Que a sorte e o talento dêem ao novo Presidente a sabedoria de perceber o que pode e deve fazer e o que não pode e não deve fazer."

Ó pá...

"O país já ganhou, a OPA talvez não"
Nicolau Santos
"Expresso" - 11.03.2006
QUALQUER que seja o resultado da OPA lançada pela Sonaecom, o país já ganhou. Vai haver mais concorrência - a separação das redes de cobre e do cabo é agora inevitável. É improvável que seja autorizada a fusão da Optimus com a TMN. E a PT percebeu que tem que melhorar o seu desempenho e tratar muito melhor os clientes.

Ponhamos os pontos nos is. A imagem que a PT transmitia era a de uma empresa com uma gestão arrogante e majestática para com os mais fracos e temerosa para com os poderosos, desprezando a concorrência interna e não cumprindo (ou só o fazendo relutantemente) as orientações do regulador, com um corpo accionista pouco coeso, onde um dos grupos manda mais que os outros e impõe os seus homens na administração, com uma estratégia defensiva no Brasil, onde se deixou encurralar e perdeu iniciativa, esquecendo também os mercados emergentes a Leste e na Ásia.

A ideia que passava era pois que a PT estava a ser gerida aquém das suas potencialidades no meio de um agónico processo de transição de poderes ao nível da administração. E quando um predador sente que a empresa está ferida, é nessa altura que ataca. Foi o que aconteceu. E foi a PT que se pôs a jeito.

Dito isto, convém também dizer duas outras coisas. A primeira é que a PT é a nossa única multinacional, o melhor cartão-de-visita de Portugal no exterior, conta nos seus quadros com muitos dos melhores especialistas nacionais e, em muitas áreas, desenvolve as melhores práticas a nível internacional, sendo inovadora em produtos, processos e serviços. E não é por causa da percepção que hoje existe sobre a empresa que tudo deixa de ser verdade.

Por isso, esta operação é uma oportunidade única para administração e trabalhadores da PT compreenderem que não iam por bom caminho - e que têm que fazer muito melhor do que nos últimos dois anos. Se não a aproveitarem, demonstrarão que não merecem a segunda oportunidade que eventualmente vão ter. E inevitavelmente acabarão por ter novos donos a mais ou menos curto prazo.

Porque é que a OPA da Sonaecom sobre a PT pode falhar? Por quatro grandes razões. A primeira é que Belmiro de Azevedo se propõe comprar 50% mais uma acção e não a totalidade do capital. Ora, Belmiro não tem propriamente uma boa relação com os accionistas minoritários, como o prova o seu passado nesta matéria, em que os conflitos judiciais se têm sucedido. E numa empresa como a PT é insustentável manter este tipo de conflitualidade.

A segunda razão é que a contraproposta da administração da PT (aprovada por todos os membros do «board», incluindo a Telefónica e apenas com as compreensíveis abstenções da CGD e do Estado) de distribuir €3 mil milhões, embora em três anos, tem condições para fazer hesitar muitos dos potenciais vendedores.

A terceira é que esta operação exige uma enorme alavancagem financeira. E para a pagar a Sonaecom vai ter de vender vários activos da PT, desde logo a rede de cobre, mas também o Brasil, as posições em África e provavelmente a PT Multimédia. Ou seja, a empresa não só vai reduzir-se em termos de dimensão, perdendo o seu carácter de multinacional, como quase desaparece no «ranking» da classificação por capitalização (está agora a meio da tabela mundial), como sobretudo vê altamente prejudicada a sua capacidade de investir nos anos seguintes. Deixamos de ter um campeão nacional, passamos a ter uma empresa centrada no mercado doméstico. Os accionistas podem não gostar desta visão futura da PT - e o Governo também não.

Como reflexo do que atrás fica dito, e este é o quarto ponto, as três grandes agências de notação (Standard & Poors, Fitch e Moody’s) desceram o «rating» da PT depois de conhecerem o plano da operadora de distribuição de dividendos até 2008 - mas dizem que o descerão ainda mais se a OPA da Sonaecom tiver sucesso por temerem um grande aumento do endividamento. Ou seja, as agências não gostam de nenhuma das propostas. Mas acham menos má, apesar de tudo, a da administração, o que é um sinal para que os grandes investidores institucionais não aceitem a proposta de Belmiro.

Será uma pena. Em primeiro lugar, porque Belmiro é o nosso maior e melhor empresário. Em segundo, porque uma acção tão ousada deveria ser recompensada. Em terceiro, porque prestou um serviço ao país e à própria PT. Em quarto, porque depois de não ter conseguido afirmar-se na banca, nem nos «media», nem controlar a Portucel, bem que merecia poder juntar o maior grupo português à maior empresa nacional. Mas as coisas são o que são. Aguardemos os próximos capítulos.

P.S. - O Santander é um dos grandes parceiros bancários da PT, com acesso a muita informação sigilosa da operadora. Mesmo assim, aceitou bancar a operação da Sonae. Não sei se há uma ética bancária. Mas se existe, o Santander fica muito bem na fotografia.

Será que ela se deixou afectar?

"Capote"
Clara Ferreira Alves
"Expresso" - 11.03.2006
"«Até àquela manhã de Novembro de 1959 poucos americanos - na realidade até poucos habitantes do Estado do Kansas - tinham jamais ouvido falar de Holcomb. Tal como as águas do rio, ou os motoristas da auto-estrada, ou os comboios amarelos que correm nas linhas de Santa Fé, o drama, sob a forma de acontecimentos extraordinários, nunca ali tinha parado. Os habitantes da aldeia, cujo número não passava de duzentos e setenta, sentiam-se satisfeitos com isso, contentavam-se em levar uma vida pacata; trabalhavam, caçavam, viam televisão, frequentavam a escola, iam à igreja, tinham as suas reuniões no Clube dos 4 HH. Mas de súbito, às primeiras horas dessa manhã de Novembro, uns sons estranhos vieram sobrepor-se aos usuais ruídos nocturnos de Holcomb: os ganidos histéricos dos coiotes, o seco rumorejar das ervas altas, o apito agudo das locomotivas que se afastavam, correndo, na noite. Nessa hora ninguém os ouviu - aqueles quatro tiros de espingarda que, ao todo, acabaram por destruir seis vidas humanas».

Embora apareça na terceira página de «A Sangue Frio» de Truman Capote (Dom Quixote, 2006, trad. Maria Isabel Braga), este é o verdadeiro primeiro parágrafo do livro, o mais célebre romance documental que se escreveu até hoje, inaugurando um género romanesco a que se chamou «não-ficção». Quando a família Clutter foi assassinada na madrugada do dia 15 de Novembro de 1959, em Holcomb, Truman Capote tinha 35 anos e era uma mascote do meio literário e boémio nova-iorquino, muito apreciado por aquilo que o havia de condenar (mais tarde) ao ostracismo, a mordacidade, inteligência e o humor. Já tinha publicado «Breakfast at Tiffany’s» (1958), já tinha ganho um prémio O. Henry com uma das suas histórias, já tinha escrito dois romances («Other Voices, Other Rooms», 1948, e «The Grass Harp», 1951), já tinha colaborado com musicais, filmes e realizadores de cinema, já tinha conhecido Marilyn Monroe, bebido com John Huston e Humphrey Bogart e escrito um famoso perfil de Marlon Brando. Tinha viajado pela Europa, feito jornalismo e sido encomendado pelas melhores publicações americanas, incluindo a sua alma mater, a «New Yorker» de William Shawn. As personagens de Capote, a começar nele mesmo e a acabar em Holly Golightly, tinham um traço comum, uma certa leveza, um modo dramático de deslizar sobre as coisas da vida, incluindo as coisas graves e terminais, como quem dança num palco. Nada, na ficção de Capote e antes de «A Sangue Frio», é considerado demasiado grave ou perigoso, obscuro e obsessivo. Talvez seja isso que atrai o escritor, recostado na sua fama cosmopolita, para o artigo do «New York Times» que descreve o assassinato múltiplo de Holcomb, no Kansas. É assim que começa o filme, «Capote», com uma viagem dele e da sua amiga Harper Lee para o lugar que se constitui como o reverso das luzes de Manhattan. A viagem acabaria por demorar seis anos, e Truman Capote nunca mais foi o mesmo escritor depois de «A Sangue Frio», um trabalho jornalístico que transcende a reportagem e o romance e um livro que serviria de exemplo para outros escritores, entre eles Norman Mailer e Tom Wolfe. Mas, se «The Executioner’s Song» de Mailer é tanto sobre a pena de morte como sobre a personagem do condenado, tanto sobre o sistema como sobre a vítima do sistema, e acaba por condenar a América à pena capital, o livro de Capote é, como todos os grandes livros, sobre pessoas normais apanhadas em situações anormais e é escrito sem vestígios daquilo que torna a outra prosa de Truman Capote tão divertida, o cinismo e a descrença na espécie humana, a incontrolável tendência para a maldade e a tropelia. As anedotas que Capote costumava contar nos livros ou nas entrevistas, e que haveriam de valer-lhe o desprezo e o afastamento de quase todos os amigos no final da vida, e pelejas com outros escritores como Saul Bellow e Gore Vidal, estão ausentes em «A Sangue Frio», uma narrativa que atravessa a vida dos criminosos e das vítimas em paralelo com a autobiografia de Capote, e reconstitui os seus pensamentos e acções, embora seja preciso descobrir os cruzamentos e as identificações com um olho treinado. Capote esconde aquilo que o atrai para os dois autores do crime, sobretudo para um deles, o mais inteligente e manipulador, o mais infeliz e brutal, Perry Smith. Quando Perry e o seu colega Dick Hickock são executados, Truman Capote sente-se mal no seu papel de predador, o escritor à caça do livro. Nascido em New Orleans, e crescido numa terra de ninguém, Monroeville, no Alabama conservador e racista do princípio do século passado onde os trejeitos efeminados de um adolescente homossexual com voz de falsete não seriam muito apreciados, Truman ficou órfão de pai aos quatro anos. Tal como Tennessee Williams, outro sulista perseguido pela moral dominante e educado por mulheres, Capote não teve um pai e tomou o nome do padrasto como nome de guerra. O dele era Truman Strechfus Persons, um nome à medida das suas personagens. A amizade com Harper Lee, a autora de «To Kill A Mocking Bird», vem dessa época, e ela foi a única família que ele teve, uma mulher de princípios que rejeitava a amoralidade triunfante do escritor e desculpava nele uma crueldade de criança. «A Sangue Frio» é uma lenta e demorada pergunta sobre a morte e a violência gratuita. O que leva dois desconhecidos, dois assaltantes vulgares à procura de uns dólares, a chacinar uma família inteira, pais e filhos, cortando a garganta do pai e fuzilando com tiros de espingarda na cara? O que provoca dois homens frustrados pelo assalto não ter rendido o que esperavam a matar como quem vinga uma afronta imperdoável? A resposta arrasta o escritor para um território no coração das trevas, um território onde ele, talvez por causa da sua infância ou talvez não, se sente em casa e em família. A identificação com Perry, visível no filme, leva Capote a dizer que ele e o assassino moravam na mesma casa, ele saiu pela porta da frente e Perry pela porta de trás. A América sai intacta disto, a natureza humana não. Truman não gostava dos homens e os seus livros dão-lhe razão. Perry Smith achava o sr. Clutter uma boa pessoa, até lhe cortar a garganta."

sábado, março 11, 2006

Duelo de Titans

«UMA "SANTANETE"»
vpv
O Espectro - 05/03/2006

«A hipotética "dra." Clara Ferreira Alves (chegou com dificuldade ao actual 12º ano), crítica literária que leu (jura ela) "os clássicos", especialista do último escritor inglês com quem almoçou, autora de um romance anunciado em 1984 e nunca até agora publicado, dona de uma coluna ilegível (e bem escondida) na "revista" do Expresso, foi um dia arvorada directora da "Casa-Museu Fernando Pessoa" pela conhecida irresponsabilidade de Pedro Santana Lopes, de quem ela tinha sido uma entusiástica partidária. Daí em diante, a importantíssima Ferreira Alves e o "Pedro", como ela dizia, ficaram muito amigos. Tão amigos que a "dra." Clara apareceu um dia presuntiva directora do "Diário de Notícias", coisa que me levou a sair antes que ela entrasse. Felizmente, não entrou, porque teve medo de cair na rua entre o "Expresso" e o DN, com a reputação de uma "santanete" obediente. Agora, morto o seu patrono, não perde uma para o maltratar, supondo que demonstra "independência". Ontem, a propósito de um "Audi", que o homem comprou, despejou em cima da cabeça dele todo o lixo do mundo. Santana não aprendeu que a certa espécie de pessoas não se fazem favores.
Se a "dra." Clara me quiser responder, sugiro que me responda em inglês e não meta na conversa a sua célebre descrição do pôr-do-sol no Cairo. Muito obrigado.»

sexta-feira, março 10, 2006

Deixa lá, na Figueira foi um Mercedes

"Obscenidade"
Clara Ferreira Alves
"Expresso" - 04.03.2006

"A notícia vinha no jornal «Público» desta semana, assinada pela jornalista Ana Henriques:

«O Audi topo de gama que a Câmara de Lisboa comprou em 2003 para o seu então presidente Santana Lopes volta à praça daqui a duas semanas, depois de ninguém o ter arrematado num primeiro leilão. Novinho em folha, custou à autarquia 115 mil euros. Três anos passados a Câmara começou por pedir por ele 62.500 euros. Fosse por engolir gasolina como quem bebe água - 17,5 litros aos cem na cidade - ou por medo de notoriedade, o certo é que ninguém se mostrou interessado em adquirir o veículo por este preço. Por isso, e segundo os regulamentos em vigor, a Câmara de Lisboa leva agora o Audi de alta cilindrada, com um potente motor V8 e caixa automática de seis velocidades pela segunda vez à praça, com uma base de licitação dez por cento inferior, ou seja, 56.250 euros. Uma revista da especialidade avalia este modelo em bastante mais dinheiro. Mas a Câmara - que nega que o automóvel seja blindado, como sempre se disse - garante que se guiou por tabelas mais fiáveis, as das companhias de seguros, para assumir esta desvalorização de mais de 50 por cento. Seja como for, no rol de gastos com o Audi há ainda a contabilizar os anúncios que o município tem vindo a publicar na imprensa para se ver livre dele - qualquer coisa como 3700 euros, contas feitas por alto. O actual presidente da Câmara de Lisboa, que não anda no carro por entender que ele não se adequa ao seu estilo, disse há poucos dias que a ideia de o vender partiu do próprio Santana Lopes. Se o próximo leilão ficar igualmente deserto a autarquia continuará a tentar encontrar um interessado mas de outra forma, nomeadamente contactando ‘stands’ de automóveis».

Num país onde os políticos nos querem convencer que são modelos de comportamento e que existem para melhorar a vida das pessoas, e que a causa pública é um acto de serviço, uma notícia como esta deveria ser suficiente para acabar de vez com a carreira de um político. Não está em causa a costumada leviandade de Pedro Santana Lopes, está em causa a pura delapidação de dinheiros públicos, dinheiro dos contribuintes que não ganham, em vários anos, aquilo que a Câmara aceitou pagar pelo carro do seu presidente. No mínimo, isto devia ser um ilícito penal, e quem se comportasse deste modo devia ser imediatamente proibido de receber do Estado português mais um tostão que fosse, o que liquidaria a reforma de Pedro Santana Lopes. No máximo, isto devia ser o final de uma carreira política, qualquer carreira política. Pedro Santana Lopes não chegou ontem à política portuguesa. Inteligente, instintivo e talentoso, ágil e tremendamente hábil em campanhas eleitorais, ganhou as suas batalhas dentro do PSD contra gente que não merecia um terço da simpatia que o jovem auto-intitulado discípulo de Sá Carneiro conseguia arregimentar nas hostes laranjas e nas hostes populares. Perseguido pelos guardiões da moral e os «brigadistas» de uma ética desmentida pelos seus comportamentos duvidosos e os seus negócios amorais, Santana Lopes era o representante de uma geração que, julgava eu, queria o poder para o exercer com exemplaridade e discernimento, misturada com uma certa loucura e anarquia. Ao lado da austeridade de Cavaco e da sua banda de lacaios e barões, Santana Lopes e o seu amigo Durão Barroso pareciam mais saudáveis e mais fiáveis, apesar dos erros e da ambição surda. Tanto num caso como noutro, tiveram tudo nas mãos. Durão Barroso ganhou o país sobre a fuga de António Guterres e Santana Lopes ganhou a Câmara sobre o cansaço de João Soares. Nessa noite, perante as derrotas de Edite Estrela e José Luís Judas, considerados os dois casos extremos de autarcas indesejáveis, o país celebrou a vitória do PSD, e mesmo o país socialista celebrou esta vitória. Começava uma nova era, e o novo PSD, liberto de Marcelo e do seu grupo, e de Cavaco e do seu grupo, parecia estrear uma geração de ouro, esquecendo o facto de Barroso ter enfrentado Marcelo num congresso do partido com palavras duras justamente por Marcelo ter feito a sua aliança com o «inimigo» Paulo Portas. Sabemos hoje como a história acabou. A fuga de Guterres, comparada com a de Barroso, foi nada, e nem é preciso invocar aqui a dúbia moralidade de andar meses a negar a saída de chefe do Governo para na semana seguinte entrar como chefe da Comissão Europeia. Barroso, simplesmente e com toda a desfaçatez, mentiu ao país. Santana, certamente quando tinha acabado de estrear o seu Audi de 115 mil euros, resolveu por obra e graça do Presidente Sampaio (que achou que estes actos eram possíveis e o cargo de primeiro-ministro era fungível e dinástico) mudar-se para São Bento e passar a andar noutro carro. Barroso transformou-se em José Barroso e em comissário, Santana foi despedido e regressou à Câmara de Lisboa donde se retirou reformado, suspendendo o seu mandato como deputado na Assembleia da República. Carmona Rodrigues, o seu número dois, ganhou as eleições a Manuel Maria Carrilho, entretanto desaparecido em combate e ignorado pelo PS ou pela famosa concelhia de Lisboa do PS, que continua a fazer negócios com Carmona Rodrigues e o PSD por, li eu, «não acreditar na política da terra queimada». Entretanto, as duas grandes apostas estratégicas de Santana Lopes, o túnel do Marquês (com o qual concordei) e o Parque Mayer, jazem mortos e arrefecem. Ninguém duvida que o negócio com a Bragaparques, depois da tentativa de corrupção do vereador José Sá Fernandes, avance muito mais, e muito mais há por explicar e o ministério público investigar, incluindo o preço dos terrenos na permuta, inferior à maior oferta, o que é lesivo do interesse da CML. E o túnel do Marquês, se não está parado, parece parado ali para os lados da Fontes Pereira de Melo, aguardando as obras do Metro na Linha Amarela e ameaçando transformar-se noutro Terreiro do Paço. Esta Câmara, que herdou dívidas, sangue, suor e lágrimas, está paralisada em diversas frentes. Da potestade de Pedro Santana Lopes e de José Manuel Durão Barroso, o que ficou? A azia no estômago dos portugueses, o agravamento da crise, e a vitória do Cavaco Silva nas presidenciais, que esconde um PSD a boiar em seco. E ficou este Audi, claro (não), vendido em hasta pública, símbolo perfeito do desrespeito pelo povo português, de que Santana Lopes tanto dizia gostar."

Aqui está um tipo que não para de me surpreender

"A raposa e as uvas"
Jorge Fiel
"Expresso" - 04.03.2006

«DAS duas versões clássicas da fábula da «Raposa e das Uvas» prefiro claramente a moral da história tirada por La Fontaine à de Esopo.

Como devem estar lembrados, a história é a mesma- apenas diferem na conclusão. Uma raposa faminta passa debaixo de uma parreira carregada de cachos de uvas bem maduras, mas altas de mais. Por mais que pulasse não conseguiria abocanhá-las.
Na versão de Esopo (séc. VI a.C.), a raposa olhou para os cachos e disse: «Estão verdes...». «É
fácil desdenhar daquilo que não se alcança», concluiu o filósofo grego, tornando-se assim o remoto inspirador do moderno provérbio «quem desdenha quer comprar».

Na versão de La Fontaine (séc. XVIII), a raposa segue o seu caminho, murmurando: «Estão verdes... já vi que são azedas, duras...». «Adiantaria se chorasse?», remata o fabulista francês.

Eu interiorizei, como um mandamento de vida, o pragmatismo do ensinamento retirado por La Fontaine da fábula da raposa.

Sonhar ser vizinho da Yoko Ono no Dakota Building (com vista para o Central Park), ter um apartamento no coração do Marais (preferencialmente na Place des Vosges), ser visita frequente de casa de Scarlett Johansson e voar entre Nova Iorque e Paris em classe executiva com um portátil Sony Vaio BX197XP debaixo do braço, não passaria de um exercício barato de masoquismo.

Seria também um enorme desperdício de tempo que me impediria de tirar prazer dos meus apartamentos na Pasteleira e em São João do Estoril, da companhia da Isabel, João, Pedro e Mariana, das viagens de Alfa entre o Porto e Lisboa em que aproveito as três horas de autonomia do meu HP Pavilion dv 1000.

Devo confessar-vos que vivo bastante satisfeito com o formato «estão verdes... não prestam» gravado no meu disco rígido e respondendo sempre em regime de piloto automático.

Ser um pragmático da linha dura não equivale a atravessar a vida com os braços caídos. O «estão verdes... não prestam» não é sinónimo de desistência, mas sim da recusa em travarmos guerras que à partida sabemos que não podemos vencer.

Se queremos ganhar, é estúpido jogar ténis com Boris Becker. Mas se calhar podemos vencê-lo se o desafiarmos para uma partida de xadrez ou de matraquilhos. Temos é de ser realmente bons e competitivos nestas disciplinas.

Com uma simplicidade luminosa, o ministro de Estado japonês Kouki Chuma explica tudo isto numa frase desarmante: «As roupas baratas, o Japão compra à China. As roupas caras, a China compra ao Japão». Esta bússola de bom senso deveria chegar para sobrevivermos.»

Já se estava a adivinhar...

"Mude de atitude, compre português"
Nicolau Santos
"Expresso" - 04.03.2006

«PORTUGAL é o maior produtor mundial de cortiça. Entre as muitas utilizações da cortiça, o fabrico de rolhas é uma das mais conhecidas - que são vendidas para muitos mercados. Portugal é um produtor e exportador de vinho. Esse vinho utiliza rolhas de cortiça. Mas há algo que ameaça quer as rolhas de cortiça quer o vinho português: são os vedantes alternativos e o vinho que os utiliza.

Faz, por isso, todo o sentido que a Associação Portuguesa de Cortiça tenha lançado uma grande campanha no mercado internacional com o objectivo de reforçar a imagem das rolhas de cortiça nos mercados internacionais - e, ao mesmo tempo, de demonstrar que o toque de classe dos grandes vinhos passa pela utilização de rolhas de cortiça.

Para promover esta campanha, a APCOR recorreu a um dos rostos portugueses mais mediáticos neste momento, o de José Mourinho. E fez muitíssimo bem. É este, aliás, um exemplo a seguir. Com a globalização, todos os nossos produtos em todos os mercados (mesmo no nosso) estão sujeitos a fortes ataques da concorrência. Há que estar atento e responder-lhes taco a taco. E, para isso, há que provar que os nossos produtos são melhores, são excelentes. Associar-lhes rostos portugueses de sucesso faz todo o sentido: na arquitectura (Siza Vieira, Souto Moura), na literatura (Saramago, Lobo Antunes, Miguel Sousa Tavares, Inês Pedrosa), na música (Maria João Pires, Rodrigo Leão, Kátia Guerreiro), no desporto (Mourinho, Figo, Cristiano Ronaldo), etc.

Portugal mudou profundamente nos últimos 30 anos. Há muito que não somos o país da velhinha vestida de preto que leva pela arreata um burro que puxa uma carroça carregada com fardos de palha. Somos um país moderno - e temos de vender essa modernidade. Somos um país que tem excelentes produtos - e temos de mostrar aos outros que temos esses excelentes produtos.

É por isso que também fez todo o sentido a realização do SISAB (Salão Internacional do Vinho, Pescado e Agro-Alimentar), que durante três dias decorreu no Pavilhão Atlântico, em Lisboa. Objectivo: dar a conhecer a 560 importadores de 65 países os produtos oferecidos pelas empresas portuguesas exportadoras do sector agro-alimentar.

Essa nova imagem do país é sublinhada pelo presidente do ICEP nesta edição: Portugal é essencialmente um exportador de maquinaria, que já representa um terço das nossas vendas ao exterior. Só depois vem a fileira da moda (têxteis, vestuário e calçado), mas com metade do valor vendido das máquinas. Mais importante, enquanto o sector da moda vem numa tendência de queda, a venda de máquinas ao exterior vai numa consistente tendência altista.

A esta percepção do país há que juntar uma outra, a responsabilidade dos consumidores. Se quando compramos algo optarmos pelo produto português, exigirmos o produto português (exigindo também qualidade e um preço competitivo), estaremos a contribuir para uma economia mais forte, para empresas mais modernas e para garantir ou criar milhares de postos de trabalho. Todos nós, enquanto consumidores, somos responsáveis pela construção de um país onde seja excelente viver.»

Sois Rei!

"Um exercício inútil"
Vasco Pulido Valente

Público - 10-03-2006

«A posse do dr. Cavaco foi surpreendente. Parece que à medida que o regime se degrada, precisa crescentemente de esconder a sua fraqueza com pompa e circunstância. Mas neste caso também a pompa e circunstância serviram para anunciar outra coisa: a ideia de Cavaco sobre o que deve ser a Presidência. E, pelos vistos, deve ser um Presidência majestática. Nem Eanes, nem Soares, nem Sampaio entraram com um estrondo comparável. Se houve um "período de transição", e se calhar houve, ninguém deu por isso. Não veio de fora um cortejo de notabilidades com incenso e mirra. E a cerimónia, ela própria, teve uma certa e democrática pobreza. É a diferença entre quem se considerava um funcionário da República e quem, no fundo, se considera um soberano.
O discurso inaugural do Presidente não se distinguiu pela originalidade. Os "cinco desafios" (detestável calão) que apresentou ao Parlamento não passam de lugares-comuns, que por toda a parte toda a gente papagueia. Portugal precisa de um "crescimento mais forte"; o futuro depende da educação e da formação; a justiça está a pedir uma reforma drástica; é urgente tratar da Segurança Social; e não seria mau que os políticos se tornassem (por milagre?) muito virtuosos. Fora esta lista seca e peca, nem uma palavra em que o país sentisse o sopro de um novo espírito. Verdade que o dr. Cavaco exigiu "acção", mas que espécie de acção para que espécie de Portugal? Se ele sabe, não disse.
Infelizmente, não disse, porque não sabe. O dr. Cavaco não desembarcou ontem de Boliqueime e a cabeça dele não é um mistério. Nunca percebeu o país que governava e, hoje como ontem, sempre o quis transformar num "bom aluno" da Europa: sério, cumpridor e "moderno". Como? Aplicando, "com rigor", o "modelo" de Bruxelas: no fundo, o modelo clássico da "social-democracia", corrigido por algum "liberalismo" relutante e forçado. Não lhe ocorreu que esse "modelo" pudesse não servir à nossa velha cultura de isolamento e miséria, e à nossa classe "dirigente" irresponsável, oportunista e crassa. O resultado não se recomenda. Mas Cavaco não aprendeu nada no exílio. Volta disposto a repetir a dose, "em comum" com o Governo, se o Governo deixar. Ou seja, ponto a ponto, "medida" a "medida", vai tentar refazer o Portugal imaginário do seu tempo de glória. Um exercício inútil, como já se provou.»

segunda-feira, março 06, 2006

Ainda o enevelope

Miguel Sousa Tavares
"Assalto ao computador"
Expresso - 04.03.2006

"HÁ QUALQUER coisa de novo no raide da justiça contra o jornal «24 Horas» que é suficientemente grave como sintoma para que, mesmo sem cair em alarmismos histéricos, possa passar em claro. Como se fosse um teste da magistratura contra a imprensa, para medir as reacções e ver se há terreno livre para avançar e criar jurisprudência. Pena que tenha sido logo escolhido um jornal que é tudo menos uma referência ética e um modelo de bom jornalismo: vamos acreditar que a ofensiva judicial não teve precisamente isso em conta. O facto é que não apetece nada ter de ser solidário com um jornal como o «24 Horas», mas há alturas em que o mais importante é escolher contra quem se está e não com quem se está.

Recapitulemos o que está em causa, pois o seu simples enunciado é elucidativo. Ao abrigo das investigações do processo Casa Pia - que abriram um precedente nunca visto de meios e métodos de investigação - foi parar ao processo o chamado «Envelope 9», o qual, aberto pelo «24 Horas», revelou conter uma extensa lista das chamadas telefónicas recebidas e efectuadas por umas dezenas de pessoas que tinham em comum estar ligadas à política e não terem qualquer ligação com o processo. Perante a estupefacção geral que esta revelação causou, o Presidente da República (um dos constantes do «Envelope»), chamou a Belém o procurador e falou à Nação para dizer que não toleraria métodos de investigação que incluíam a invasão indevida da privacidade das pessoas e, como tal, dera ao procurador um prazo curtíssimo para apurar como tal fora possível e daí extrair as necessárias consequências, disciplinares e penais. Claro e inequívoco: tratava-se apenas de esclarecer qual das duas hipóteses acontecera: se os investigadores tinham pedido esses elementos ao operador telefónico ou se fora este, sem ter sido solicitado para tal, que os fornecera. Nada mais do que isto e para apurar isto, mesmo ao mais incompetente serviço de investigação do mundo, bastariam três dias, para não dizer três horas.

Mas sucedeu, uma vez mais, o impensável: passado mês e meio, o procurador nada apurou e, não contente com isso, deixou que os seus magistrados mudassem o sentido do mandado presidencial - em vez de apurarem como e por ordem de quem é que tais elementos tinham ido parar ao processo, resolveram apurar como é que tal notícia tinha ido parar ao jornal. Entretanto, o dr. Souto Moura espera que nada suceda até terça-feira próxima, último dia da presidência de Jorge Sampaio, e confia que o novo Presidente não irá mexer num assunto que não foi ele a levantar, criando logo à partida um conflito entre órgãos de soberania. Perfeito, exemplar: nenhuma biografia poderá jamais testemunhar melhor o que tem sido o entendimento das suas funções por parte do dr. Souto Moura - na esteira, aliás, do seu inesquecível antecessor, Cunha Rodrigues, a quem a justiça portuguesa deve muito do estado a que chegou.

Agora, um juiz de instrução criminal acaba de determinar que os computadores apreendidos a dois jornalistas do «24 Horas» podem ser abertos e livremente vasculhados pelos investigadores a mando do dr. Souto Moura. Para justificar aquilo que, antes de mais, é uma extrema violação da privacidade e do segredo profissional, o juiz considerou que «a possibilidade de devassa do sigilo profissional é inferior ao crime que está em discussão». Lê-se esta decisão e fica-se perplexo. Primeiro que tudo, não se percebe bem que crime poderão ter cometido os jornalistas, ao revelarem uma peça que consta de um processo que está em julgamento. Em seguida, «o crime que está em discussão» é o que consiste no pedido ou no fornecimento indevido dos registos telefónicos do «Envelope 9» - foi isso que o Presidente mandou investigar e isso nunca poderia ter sido feito por jornalistas, mas só por quem tinha poderes para tal. Em terceiro lugar, tendo os jornalistas do «24 Horas» fornecido logo as disquetes referentes ao «Envelope 9», assim que foram visitados pelos investigadores, que mais quererão estes vasculhar nos seus computadores que tenha que ver com esta investigação? E, finalmente, atente-se no desprezo a que o magistrado vota o sigilo profissional dos jornalistas, sem o qual nunca teria existido
jornalismo de investigação, a começar por Watergate e a acabar nas denúncias de todos os abusos processuais cometidos durante a instrução do processo Casa Pia.

É impossível fugir à conclusão da leitura sobreposta e sucessiva dos factos. A instrução do processo Casa Pia foi revelando algumas práticas investigatórias e alguns métodos de actuação dos magistrados que não são aceitáveis num Estado de direito (felizmente não extensíveis ao julgamento, cuja condução tem sido inatacável). A certa altura, tornou-se mesmo evidente que havia um desvio político na investigação, visando particularmente o Partido Socialista e acabando por vir a ter uma influência determinante no curso da política nacional. Basta recordar o episódio em que às vítimas do caso foi exibido um catálogo de fotografias de potenciais suspeitos e onde se incluíam, entre muitos outros da área política escolhidos a dedo, Mário Soares, Almeida Santos ou Jaime Gama - um método de investigação inédito, aberrante e assustador.

Nessa fase da instrução, os investigadores contavam com o apoio geralmente acrítico da imprensa, cujo interesse legítimo em querer sempre saber mais do que se passava lá dentro foram alimentando com sucessivas e oportunas fugas de informação, invariavelmente mandadas investigar e logo deixadas em descanso pelo inabalável Souto Moura. Mas agora, ao que parece, os jornalistas já não estão bem vistos lá por casa. Porque, aos poucos, foram pondo crescentemente em causa coisas estranhas que se iam passando e porque, agora que o Presidente da República resolveu intervir e pedir satisfações pelo «Envelope 9», era preciso sacudir a água do capote e arranjar bode expiatório mais à mão: os aliados de ontem.

Fiquemos atentos, porque vêm aí mais episódios desta roda livre em que funciona a justiça. Para breve, prepara-se a criminalização dos jornalistas pela violação do segredo de justiça: prende-se o mensageiro, que está identificado e não faz parte da corporação, e manda-se investigar «rigorosamente», e sempre fracassadamente, quem lhe passou a mensagem, a partir do processo que tem à sua guarda."